Violência doméstica: “O silêncio da vítima é a arma do criminoso”

Francisca e Ângela deram a cara. A chamada é para romper com o silêncio em que vivem e tantas vezes (demais, uma só já seria demais) morrem as vítimas de violência doméstica. A MEO, marca da Altice Portugal, deu corpo à iniciativa, as vuvuzelas e buzinadelas deram-lhe som, e os rostos deram-lhe humanidade.

“Olá o meu nome é Francisca e durante anos fui vítima de violência doméstica. Peço-lhe que não se afaste já, espere só um pouco. E não tanto como eu esperei. Esperei que ele voltasse a ser o homem po​r quem um dia me apaixonei… Uma ilusão. Hoje sei que o amor não tem nada a ver com violência. Sei que não é fácil, mas é preciso fazer barulho, pedir ajuda. Foi o que fiz, pela minha filha.”

“Olá o meu nome é Ângela, tenho 48 anos e durante 10 anos fui vítima de violência doméstica. De certa maneira, fui também vítima do tempo que passei à espera que os abusos tivessem fim. Fui vítima do medo, do isolame​nto, da dependência económica. Um dia vi-me reduzida a nada. Disse já chega! Pedi ajuda, pela minha mãe e pelos meus filhos, não desisti. Porque nada é pior do que ficar.”

Rosa Mota, João Gil, Iva Domingues, Luís Represas, Sílvia Rizo, Jaime Marta Soares, Ercília Machado entre tantos outros, homens e mulheres — porque a violência é um problema de homens e de mulheres, novos e velhos, nosso —, saíram à rua e fizeram um minuto de barulho para marcar o momento em que pelo menos 30 pessoas perderam a vida, vítimas de crimes de violência doméstica. “Estamos a fazer um minuto de barulho pelas mais de 30 vítimas que morreram no silêncio”, podia ler-se nos cartazes. E assim fizeram, esta quarta-feira, 30 de outubro, um pouco por todo o país.

“ACABARAM-SE OS SILÊNCIOS.” Francisca

“Hoje foi um dia absolutamente revolucionário na forma de tratar as vítimas de violência doméstica neste país”, diz-nos Francisca. “Costumam tratar as vítimas com silêncio, com minutos de silêncio, e hoje foi um dia de fazer barulho. E assim continuará a ser. Acabaram-se os silêncios”, sentencia. Está emocionada, a voz treme, mas a mensagem é de resistência, de luta.

Falámos com Francisca momentos depois da segunda iniciativa de sensibilização conduzida pela Altice no âmbito da campanha #NãoFiqueÀEspera, lançada em março deste ano.

“A melhor forma de combater este flagelo [da violência doméstica] é não ficar em silêncio, daí este barulho simbólico, que teve com principal objetivo despertar a mente daquelas vítimas que continuam a sofrer para quebrarem esse silêncio, para denunciarem, para não ficarem à espera e para fazerem barulho na forma de queixa, na forma de alertas, seja às autoridades, a amigos, a familiares que possam ajudar”, explica Alexandre Fonseca, CEO da Altice Portugal.

“É muito fácil todos nós, enquanto cidadãos, mas em particular enquanto grandes empresas remetermo-nos muitas vezes ao conforto da vida do dia-a-dia, dos negócios e das empresas, e esquecermo-nos aquilo que se passa na sociedade. A Altice selecionou a intervenção social como um dos seus pilares estratégicos para esta administração”, acrescenta.

Foram várias a entidades que se associaram a esta iniciativa, nomeadamente a APAV — Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, a Liga Nacional de Bombeiros, a Associação Portuguesa dos Contact Centers (APCC) e a Federação Portuguesa de Futebol (FPF). Mas o destaque vai para os rostos desta campanha. “É de destacar a coragem da Francisca e da Ângela, que deram a cara, por se tornarem também um pouco as bandeiras desse combate à violência doméstica”, salienta Alexandre Fonseca.

“O silêncio mata”, começa por nos dizer Ângela. “Tenho de incentivar outras mulheres a pedirem ajuda profissional, a não se calarem, a não guardarem para si. É possível viver outra vida, há sempre uma vida”, reitera.

Os filhos e a mãe deram-lhe forças no momento em que não acreditava ser possível recomeçar depois de dez anos de sofrimento. Hoje usa a sua voz para incentivar outras mulheres a agir. “Ninguém nos garante que é fácil”, atira. Sabe-o bem.

“NÃO HÁ NADA PIOR DO QUE FICAR.”Ângela

“Eu fui apresentar queixa e tive de voltar para casa. Quando os agentes da autoridade me trouxeram para casa eu perguntei ‘então e agora? Os senhores vão lá comigo e vão, por exemplo, fazer uma medida de coação? Vão, por exemplo, dizer que estão ali para garantir que esta senhora fica entregue e…’ E eles olharam para mim e disseram ‘minha senhora, infelizmente nós não podemos fazer isso, vamos levá-la à sua porta, mas a senhora vai subir sozinha’. Eu senti-me completamente vulnerável, eu não sabia, depois de apresentar a minha queixa, o que é que eu ia encontrar dentro de aquilo que era a minha casa”, conta.

No seu caso foi alvo de violência física sexual e de violência psicológica. “Foi a minha palavra contra o agressor”. “A mulher se é agredida e tem marcas então é vítima de violência doméstica. Se a mulher não tem marcas físicas não é vítima de violência doméstica”, lamenta. “E depois temos este problema de não pedirmos ajuda, de não querermos fazer exames, não queremos divulgar a ninguém, temos receio de não ser afirmadas, receio das humilhações”. E quando se tem filhos “é doloroso, porque a vítima de violência doméstica é vítima também do tempo que deixa passar à espera que os abusos tenham fim”. No seu caso havia ainda “a dependência económica, fomentada pelo agressor no sentido de aprisionar”, relata.

Apesar das dificuldades por que passou, é categórica: “Não há nada pior do que ficar”.

“Nós não nos devemos minimizar para caber no mundo de outra pessoa. (…) Eu consegui, com todas as minhas dificuldades, com a idade que já tenho. (…) Eu sou a prova de que é possível. Acreditem que há sempre uma vida”, repete uma e outra vez em diferentes momentos da nossa conversa.

Quando lhe perguntamos o que é preciso mudar diz que “tem de haver nestes contextos uma mudança muito radical: ou recebem imediatamente a mulher em regime de acolhimento de emergência e dão-lhe a possibilidade de salvar a vida; ou têm de tomar medidas de coação em relação ao agressor. Ou afastam a mulher ou afastam o agressor”.

“É INACEITÁVEL QUE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NÃO FAÇA PARTE DA NOSSA LISTA DE PRIORIDADES NO QUE TOCA AO COMBATE DOS FLAGELOS SOCIAIS.”Alexandre Fonseca

A par, pede sanções mais pesadas para os agressores. “Nós não temos segurança nenhuma como vítimas, têm de haver sanções mais pesadas. Não estou a dizer nada de novo, sou só mais uma a dizer que as leis têm de mudar”, diz. “É uma revolta enorme perceber que estamos na reta final do ano e que já temos mais de 30 vítimas mortais e não se tomam providências”.

Francisca segue-lhe a deixa. “Estes números dizem-me que o governo não está a fazer o suficiente. (…) É preciso impor leis muito mais duras aos agressores”, defende.

Alexandre Fonseca assume que “fazer barulho” é um passo, mas que outros devem ser dados. “Eu acredito que quando nós temos vontade e capacidade de mobilizar toda esta multidão que vimos aqui, assim como no resto do país [a iniciativa da MEO replicou-se em 18 distritos], com certeza também vamos colocar um pouco mais de pressão nos outros planos da sociedade que, por razões diferentes, têm mais dificuldades em conseguir acelerar neste combate [à violência doméstica]. É inaceitável que a violência doméstica não faça parte da nossa lista de prioridades no que toca ao combate dos flagelos sociais”.

Não é impossível fazer prova de violência quando esta não é física

“A violência doméstica não se esgota no âmbito da relação”, explica Daniel Cotrim, psicólogo e representante da APAV. “Se pensarmos no nosso código penal, no artigo 152º, aquele que tem que ver com as questões da violência doméstica, ele é muito abrangente e fala, para além da violência conjugal, da violência entre namorados, entre pessoas do mesmo sexo, contra pessoas idosas. Quando falamos de violência doméstica falamos em todas as formas de violência que ocorrem em contextos de intimidade”. No entanto, salienta, “aquilo que nós sabemos é que estatisticamente os números são muito mais altos e prevalentes no caso da violência conjugal, e que, desproporcionalmente, afetam muito mais as mulheres do que os homens”.

E existem diversas formas de violência, não sendo a física, aquela que mais se associa por vezes à violência doméstica, a que mais ocorre. “De acordo com os números da APAV e da Administração Interna, os dados da violência psicológica são superiores à violência física. Aquilo que nós sabemos é que a violência psicológica, verbal, a humilhação e a injúria muitas vezes acontecem primeiro do que a violência física”.

E apesar de as marcas de uma violência psicológica serem mais difíceis provar, “não é impossível”, garante Daniel Cotrim. “Já temos casos em tribunal em que se fez jurisprudência com situações de violência psicológica no âmbito da violência doméstica. Agora, é importante quando há violência física que as pessoas recorram a hospitais ou aos centros de saúde, exactamente para que este tipo de informação fique toda ela registada”, alerta.

Quando o primeiro ‘não’ é rejeitado

No caso da violência no namoro, Daniel Cotrim salienta que é preciso ajudar os mais jovens — de 13, 14, até aos 18 anos — a “descodificar as situações” e, salienta, não é de “dedo indicador em riste” que se abordam estas situações.

“Quando estamos a falar de jovens estamos a falar em pessoas que estabelecem entre si uma relação de procura e de busca de identidade. Em 99% das situações os rapazes e as raparigas namoram com pessoas que pertencem ao mesmo grupo de amigos e amigas, e, muitas vezes, desocultar a questão da violência daquela pessoa contra nós implica ficar sozinhos ou sozinhas, implica ter de abandonar o grupo de amigos. Por isso é que, muitas vezes, falar de violência no namoro é complicado”.

“A PARTIR DO MOMENTO EM QUE O NOSSO ‘NÃO’, O NOSSO PRIMEIRO ‘NÃO’, É REJEITADO PELA OUTRA PESSOA É PORQUE A NOSSA LIBERDADE ESTÁ EM RISCO.”Daniel Cotrim

Além disso, salienta, é preciso “perceber o que é uma relação de namoro” e “trabalhar com os jovens no sentido de entender o tempo deles”. “Aquilo que nós sabemos é que, para a grande maioria dos jovens, o insulto, o mau trato verbal, não é uma forma de violência, e que muitas raparigas, em cinco cada quatro, já foram forçadas a ter relações sexuais. Agora, tudo isto tem de ser enquadrado naquilo que sabemos que é ser adolescente, onde a pressão do grupo de pares exerce um poder fundamental. (…) Para a grande maioria dos jovens, se lhes perguntar, controlar o Instagram ou controlar as amizades não é nada de errado. Claramente que isto é uma forma de controlo, e claramente que isto é uma forma de poder”, exemplifica.

A resposta passa, defende Daniel Cotrim, por trabalhar cada vez mais cedo “as questões da violência, da cidadania, da igualdade de género, as questões que estão associadas por exemplo à inteligência emocional, que é o sabermos explicar o que estamos a sentir. Quando ouvimos jovens falar sobre como é que se dão entre si e como é que identificam violência no namoro, falta-lhes, porque não lhes ensinámos — e, se calhar, porque nós adultos também não sabemos —, perceber e trabalhar a questão das emoções”.

“O CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA É UM CRIME PÚBLICO QUE PODE SER DENUNCIADO POR QUALQUER PESSOA. O CRIME PODE OCORRER EM LISBOA, MAS AS PESSOAS PODEM FAZER DENÚNCIA EM BRAGA, NÃO É UM CRIME COM TERRITÓRIO, NÃO PRESCREVE NO TEMPO.”Daniel Cotrim

Já sobre os sinais que podem servir a miúdos e graúdos para identificar se estão ou não numa relação abusiva, Daniel Cotrim resume: “A partir do momento em que o nosso ‘não’, o nosso primeiro ‘não’, é rejeitado pela outra pessoa é porque a nossa liberdade está em risco. E só é um namoro feliz, só é uma relação amorosa feliz e plena quando a nossa liberdade é plena e é feliz — exatamente porque o outro me permite fazer aquilo que eu quero, me permite ser individual e [é possível] termos momentos em que podemos ser apenas um, quase de uma forma romântica”.

Quando se fala de prioridades no combate à violência doméstica, Daniel Cotrim coloca a tónica na prevenção. “Aquilo que se continua a assistir de alguma forma é um país, um Estado, que investe muito dinheiro, muitas pessoas, muitos recursos na intervenção, a remediar, e investimos muito pouco em prevenção. Portanto, o que nós gostaríamos muito era que este paradigma se alterasse”. A par fala da necessidade de uma maior coordenação entre as diferentes entidades que atuam nesta área.

No momento em que as vítimas decidem denunciar um caso de violência doméstica “podem contactar imediatamente a polícia, através do 112 ou procurando o número da esquadra local. O crime de violência doméstica é um crime público que pode ser denunciado por qualquer pessoa. O crime pode ocorrer em Lisboa, mas as pessoas podem fazer denúncia em Braga, não é um crime com território, não prescreve no tempo”.

Além disso, a vítima pode procurar o apoio de associações, como a APAV. “Temos um número gratuito, o 116 006, em [as pessoas] são ouvidas por um conjunto de técnicos com preparação, [depois] é avaliado o grau de risco e a partir daqui é pensada a sua situação”.

“É importante dizer às pessoas que querem denunciar, que querem sair de uma situação de violência doméstica, que quanto mais depressa derem este passo, mais depressa ficam livres para poderem reformular a sua vida. E que não, as casas-abrigo não são a única resposta que existe em Portugal. Elas são a resposta de fim de linha, existem outras. (…) O silêncio é infelizmente a grande companhia da maioria das vítimas de violência doméstica e é infelizmente a grande arma que os agressores e agressoras usam”.

Ângela havia-o dito muito antes: “É preciso incomodar, incomodar, incomodar, consciencializar, agir. (…) Diz-se muito erradamente que o que acontece entre quatro paredes não é para contar, é falso. O silêncio da vítima é a arma do criminoso”. 

Sapo 24

Fotos: Rita Sousa Vieira / Madremedia