Centenas de imigrantes a quem a pandemia de covid-19 tirou o emprego encontram agora na Associação Mundo Feliz “a única ligação” uma rede de apoio no país onde vivem e que lhes garante um saco de comida por dia.
Quando na quarta-feira os relógios bateram as 09:00 já marcavam uma hora de espera e ansiedade. Em Algés, concelho de Oeiras, desde as 08:00 que a fila se alongava rua afora até à porta da associação que passou a ser o garante de sobrevivência de centenas de pessoas e famílias. O “Mundo Feliz” prometido no nome e escrito na porta apresenta-se agora como uma triste ironia para quem faz fila por um saco de alimentos e delimita uma fronteira entre o antes e o depois da pandemia.
“Podemos dizer que a vida das pessoas desde que começou a pandemia mudou totalmente. Temos 9.000 associados inscritos, mais de 5.000 ficaram sem emprego. Quer dizer que muita gente neste momento não está a receber apoios de lado nenhum”, disse Cecília Minascurta, presidente da Associação Mundo Feliz, uma instituição de apoio à integração de imigrantes, que ajuda nos pedidos de legalização e nacionalidade, inscrição na Segurança Social, procura de casa e emprego, abertura de contas bancárias, formação e apoio jurídico, entre outros aspetos.
A este universo junta-se um crescimento no apoio alimentar, que já existia, mas que agora chega a mais de 800 pessoas por mês, o triplo das 200 a 300 pessoas que costumavam ajudar.
“É uma diferença muito grande. Os números triplicaram, às vezes não temos suficientes apoios. Às vezes estamos a parar para fazer mais sacos”, disse Cecília Minascurta.
Às 11:00 de quarta-feira, num dia em que esperavam receber entre 300 a 400 pessoas, já era a terceira fila que as técnicas da associação atendiam. Pelo meio houve uma paragem para encher mais sacos de bens essenciais, colocados numa mesa à porta da instituição e onde quem precisa se dirige, esteja ou não inscrito. Cecília Minascurta diz que não deixam de apoiar ninguém.
Há palavras de apoio para quem já é presença habitual e perguntas para ajudar a enquadrar a ajuda necessária para quem chega de novo. Há quem passe e saia com dois sacos e um “força, tudo a correr bem”, há quem pergunte se pode levar mais qualquer coisa, porque a família é grande, há quem leve uns doces extra que não estavam no saco, para alegrar as crianças em casa.
Jorge Beloz, chileno, também fez fila na quarta-feira. Aterrou em Portugal em setembro e recorreu à ajuda da associação desde o primeiro dia em Lisboa para tratar da sua regularização. Agora, sem o emprego de vitrinistas, Jorge e o companheiro precisam dela também para comer.
“Estávamos a fazer montras, em lojas de decoração. Como está tudo fechado não podemos trabalhar. Estamos à espera do que vai acontecer quando acabar o confinamento. Não sabemos se os nossos clientes vão ter dinheiro para nos poder contratar para fazer as montras”, disse.
O dia-a-dia no país “tem sido muito difícil, mas ainda assim tranquilo, porque em Portugal as coisas têm funcionado bem”, sobretudo em comparação com o Chile, comentou.
Adriano Azevedo tem uma dupla preocupação e uma dupla necessidade. Em Portugal há dois anos e meio, o cidadão brasileiro e o filho, ambos empregados na área do espetáculo, estão sem trabalhar já desde fevereiro. Foi o primeiro setor a ressentir-se, com muitos adiamentos e cancelamentos, e pode ser dos últimos a retomar a normalidade.
“Eles estão pedindo para evitar o máximo possível e a gente tem que compreender, mas é uma situação difícil”, disse, adiantando que tem contado com o apoio da associação para procurar emprego nesta fase.
O desemprego foi “o milagre da multiplicação” dos problemas para a Mundo Feliz.
“Temos a listagem com as pessoas que antes da pandemia já tinham problemas e agora se multiplicaram e vieram aqueles que ficaram sem emprego. São de diversas áreas. Até agora tinham uma vida estável, tinham uma vida mais um menos equilibrada, conseguiam pagar as despesas. De repente ficaram sem poder pagar a renda, não têm comida para dar aos filhos, têm dois, três filhos em casa. Estão a passar muitas dificuldades. Pelo menos é isso que estão a passar nos telefonemas”, disse Cecília Minascurta.
Pelo telefone presta-se agora muito “apoio emocional”, com uma equipa de atendimento reforçada e que conta com 10 técnicos, mas isso também é feito a quem lhes bate à porta.
“Cada dia se notam mais os problemas que têm em casa, os conflitos, a família, já se nota uma grande diferença. Cada vez as pessoas parecem mais nervosas devido aos problemas que têm em casa, nós tentamos acalmar, mas às vezes não é fácil”, disse Cecília Minascurta.
Os pedidos de ajuda chegam não só de Oeiras, mas também de concelhos e distritos próximos, como Lisboa e Setúbal, e não apenas de imigrantes. Com o desemprego a crescer, cresceram também os pedidos de ajuda dos portugueses.
“Cada vez mais temos pessoas portuguesas a pedir ajuda, porque ficaram sem trabalho. Muitas no turismo, estavam com uma vida muito boa antes de a pandemia começar e praticamente desde fevereiro não receberam nada”, disse a presidente da associação.
Cecília Minascurta afirma que o apoio recebido do Banco Alimentar Contra a Fome de Lisboa tem sido fundamental para responder aos pedidos de ajuda, mas ainda que o banco procure “dar mais alguma coisa”, a associação tem precisado sempre de mais.
A gestão das muitas necessidades e pedidos para os poucos recursos tem sido o trabalho diário do Banco Alimentar (BA) e da Rede de Emergência Alimentar montada para responder à pandemia, explicou Isabel Jonet, presidente do BA, referindo que agora é preciso prestar mais atenção a sobreposições e fraudes e garantir que os alimentos são entregues pela associação mais próxima da zona de residência de quem pede ajuda.
“Esta é uma preocupação sobretudo para assegurarmos que todas as pessoas que têm necessidades recebem, porque os pedidos são muitos e os alimentos são em quantidade limitada e o que temos que fazer […] é assegurar que todas as necessidades podem ter uma resposta. Para isso temos que garantir aqui que todos os produtos que são entregues são entregues a uma família que necessita, nas quantidades que necessita”, disse.
Os imigrantes estão cada vez mais presentes nos pedidos de ajuda. Nos últimos dias o BA recebeu de Leiria um pedido de apoio para 150 pessoas de uma comunidade de cidadãos brasileiros que ficaram sem trabalho.
Os 12.060 pedidos que já chegaram ao BA abrangem cerca de 58 mil pessoas, calcula Isabel Jonet. Uma contabilidade em atualização permanente, por excesso, feita de casos particulares e de muito desespero, como o pedido presencial, no armazém de Alcântara, em Lisboa, de um homem que perante o amontoado de caixas de fruta gritava sem perceber porque não lhe davam pelo menos uma peça de fruta.
O caso relatado por Isabel Jonet serve também para explicar a razão para o BA nunca entregar alimentos e encaminhar sempre as pessoas para as associações mais próximas de suas casas. No dia em que abrirem uma exceção nunca mais deixarão de ter filas à porta.
Por vezes, encontram-se outras soluções. Sidónio Jorge perdeu o emprego na fábrica de montagem de cozinhas onde trabalhava, mas não a esperança de o recuperar quando a atividade económica retomar. Sem qualquer apoio, dirigiu-se ao BA para pedir ajuda e agora faz voluntariado, oito horas por dia, em troca de almoço diário e da garantia de apoio alimentar numa instituição perto de casa.
Já Francisco Albuquerque vai apenas para ajudar. Está em ‘lay-off’, tal como os restantes 10 empregados do restaurante onde trabalha e que se decidiu pela paragem depois de uma tentativa pouco lucrativa na modalidade de ‘take-away’.
“Já tinha feito várias campanhas, já tinha estado cá no verão a trabalhar e soube que era preciso ajuda, até foi uma amiga minha que me aconselhou. Venho duas, três vezes por semana, também para poder ajudar em casa”.
Desde o início da pandemia também os telefones do BA não param. Criou-se um pequeno ‘call-center’, de voluntários “com boa vontade” para ajudar quem está do outro lado da linha.
“Apanhou-nos a todos de surpresa o que está a acontecer, temos pedidos a toda a hora, os telefones tocam constantemente, tentamos ajudar as pessoas e encaminhá-las para a rede de emergência alimentar que está aqui a funcionar de modo as pessoas ficarem apoiadas o mais rapidamente possível. É uma aflição para nós que estamos a atender os telefones, estamos a acompanhar as situações e a encaminhá-la. É dramático”, disse Carla Fernandes que já trabalha há duas décadas nos serviços de apoio do BA.
Quem liga às vezes precisa tanto de um ouvido e de empatia como de alimentos.
“As pessoas estão a passar tempos muito difíceis, sem comida em casa, sem emprego, com filhos, a quem não têm nada que dar, com pais, muitas pessoas com idade elevada que nos telefonam desesperados, que não têm ninguém que lhes dê apoio alimentar e [o trabalho] passa por ouvir. O que peço a todas as pessoas que estão a ajudar-nos nos telefones é que mantenham sempre a serenidade e uma paz que reconforte o coração que está do outro lado”, disse Carla Fernandes.
Lusa