Planeamento da Proteção Civil foi feito “a convidar ao desastre”

Especialistas em clima e fogos e a Liga dos Bombeiros contestam decisão de reduzir meios para metade em outubro

Ter mais de 500 fogos num dia, como aconteceu no domingo “não é normal”. Ter 38 mortos e mais de meia centena de feridos em incêndios florestais nestes últimos dois dias “não é normal”, tal como também não são normais as “temperaturas muito elevadas e a seca extrema no território”. Mas este quadro excecional já estava previsto e o planeamento da Proteção Civil – que reduziu os meios no terreno para metade com o fim da fase Charlie a 30 de setembro – podia ter sido outro, critica Filipe Duarte Santos, um dos maiores especialistas do país em alterações climáticas: “Se as condições meteorológicas se mantêm e se reduzem os meios é convidar o desastre”.

E o desastre veio mesmo, em proporções que não se pensariam possíveis desde a tragédia de Pedrógão, a 17 de junho, quando morreram 64 pessoas e mais de 200 ficaram feridas. No domingo passado, bateu-se o recorde do maior número de fogos num dia (523) e contaram-se os mortos: mais de três dezenas. Os feridos, mais de 60, ao ponto de a grande procura nos hospitais de Coimbra e Viseu ter levado a transferências para o hospital de Santa Maria, em Lisboa. Os desalojados, mais de cem. Já os meios no terreno são metade dos que estavam alocados à fase Charlie (a mais crítica da época de fogos que se iniciou a 1 de julho e terminou 30 de setembro).

“Do dia 30 de setembro para o dia 1 de outubro as condições meteorológicas não se alteraram. No entanto, os meios de combate aos incêndios caíram para metade porque acabou a fase Charlie. Temos de começar a ser mais flexíveis!”, alerta Filipe Duarte Santos, que é também presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável. “Ou seja, continuámos com seca em outubro e com temperaturas elevadas. Não se vê bem qual foi a razão então para acabar com a fase Charlie, foi apenas a de cumprir calendário administrativo. Muda-se de mês e diz-se aos operacionais que já podem ir para casa e assim vamos gastar menos dinheiro”.

Paulo Fernandes, perito da Comissão Técnica Independente nomeada pela Assembleia da República e que elaborou um relatório sobre os fogos de junho, que o DN tentou contactar, disse ao semanário Expresso que o risco de incêndio nas regiões mais afetadas era máximo e estava acessível desde sexta-feira: “Ter em conta as previsões do IPMA seria a medida mais rápida a adotar, mas, para isso, a Autoridade Nacional de Proteção Civil deveria estar mais atentar e fazer planeamento tendo em conta esta informação. Não pode ficar no comando de Carnaxide nem nos distritais, tem de chegar ao local.” E concluiu: “Bastava ver as imagens de satélite, era bastante claro.”

“Diminuição de 80% dos meios”

Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, volta a criticar – como tem feito desde há meses – a estratégia seguida pela Autoridade Nacional de Proteção Civil. “Sabia-se que se iam manter as altas temperaturas, a humidade e os ventos atípicos, e que o combustível estaria mais inflamado. Mandava o bom senso e o sentido de responsabilidade que o dispositivo de combate ficasse muito próximo do que estava na fase Charlie. Mas não foi isso que a Proteção Civil fez”, criticou o responsável. E sublinhou que “o corte foi brutal”: ” Houve uma diminuição de 80% dos meios: passaram de 48 aviões para 18, retiraram 4000 operacionais do terreno; retiraram quase 800 viaturas. Argumentaram falsamente que na fase Delta, em que estamos agora, aumentaram 50 equipas de reforço que não estavam previstas. Mas não foram capazes de responder às solicitações dos CODIS que pediam 250. Fecharam os 266 postos de vigia e depois, a posteriori, vieram abrir 70 e tal”. Recordou ainda que “este dispositivo está preparado para 250 fogos por dia e não para 500 como houve no domingo”.

Alerta vermelho prolongado

No briefing das 16.00 de ontem, a adjunta do comando da ANPC, Patrícia Gaspar, foi questionada sobre as razões para se ter acabado a fase Charlie no calendário previsto quando a situação era atípica. “A desmobilização já estava prevista quando se definiu no início do ano o dispositivo especial de combate a incêndios florestais (DECIF)”, respondeu, justificando que “ainda assim, com base nas previsões meteorológicas, foi possível reforçar alguns meios e acrescer 900 bombeiros”.

Justificou também a decisão de se prolongar o alerta vermelho em todos os distritos do país até às 20.00 de hoje: “Porque apesar da possibilidade de precipitação em todo o país não seria prudente baixar o nível de alerta.”

Perante as perguntas insistentes quanto à redução de meios, Patrícia Gaspar concluiu desta forma: “Se quando nós fizemos o planeamento em março soubéssemos que nesta altura iria ser assim teríamos feito de forma diferente”.

Não têm faltado alertas dos especialistas. “Quando a temperatura é mais elevada do que o normal, e a humidade do solo e do ar baixam muito, os fogos têm tendência a agravar-se”, explica Filipe Duarte Santos. “Portugal já está a sentir a mudança climática. Temos de adaptar-nos e tê-la em consideração. O clima dos próximos 10 a 30 anos tem tendência a ser cada vez mais quente e seco, com menos chuva. As secas serão mais frequentes e intensas. Este novo clima é muito próximo do do Norte de África, de cidades marroquinas como Rabat ou Marraqueche e está a migrar para o sul da Europa”.

ENTREVISTA

Pedro Viterbo

departamento de meteorologia e geofísica do ipma

“São indícios de alterações climáticas”

Participou do relatório da comissão independente sobre o incêndio de Pedrógão na parte que tem a ver com o clima. Estamos a assistir a um novo paradigma climatérico?

O mais plausível, para perceber Pedrógão e estes últimos incêndios, é associar às alterações climáticas. Não tivémos nos últimos 10 ou 15 anos secas muito grandes, os anos de 2003 e 2005 foram muito graves em fogos mas nunca antes houve todo um conjunto como o que temos agora. Não temos água no solo, estamos quase ao nível zero, uma temperatura invulgar, tanto na fase de Pedrogão como agora, em outubro, com 33 e 34 graus. Tudo isto configura um novo paradigma.

Pedrógão obrigou a pensar neste novo quadro climático?

O que vimos no incêndio Pedrógão Grande é invulgar ao nível mundial. Pesquisámos vários trabalhos científicos e só conseguimos encontrar dois ou três artigos sobre dois fenómenos com paralelo,ambos nos Estados Unidos: um na Califórnia, outro no Colorado. Ou seja, a conjunção de calor extremo, trovoadas e duração muito grande de fogos. Em Pedrógão começou no sábado 17 de junho e prosseguiu por dias numa sequência completamente invulgar. Foram quatro dias de uma situação nunca vista.

Que tipo de clima vamos ter em Portugal num futuro próximo?

Havia uma analogia bastante ilustrativa em alguns estudos que dizia que Portugal estaria como Marrocos a nível do clima. Está a ficar sim. O que vamos ter nos próximos 10 a 15 anos, de forma intercalada ou de três em três anos, de verões e finais de verões com calor extremo e grandes incêndios.

Que medidas urgentes se podem tomar?

De urgencia não há muito para fazer. Temos zero água no solo em todo o territorio. Temos dejuntar geofísicos, gente dos solos, da vegetação, para analisar isto. Só nos próximos cinco a 10 anos poderemos pôr o carimbo das alterações climáticas.

 

Fonte: DN