Algumas das pessoas resgatadas pelas equipas da MSF no Geo Barents encontraram coragem para partilhar as suas histórias. A organização desenvolve atividades de busca e salvamento no Mediterrâneo central desde 2015.
Passou já um ano de operações no Mediterrâneo central, desta vez com o Geo Barents – o navio de buscas e salvamento operado pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) –, tendo sido resgatadas das águas 3.138 pessoas e feitas 6.536 consultas médicas antes de as desembarcar num local seguro na Europa. Após o trágico resgate na noite de 27 de junho passado, a triste realidade na fronteira sul europeia não mudou: a normalização das políticas de dissuasão e de não-assistência no mar, assim como o desmantelamento do sistema de buscas e salvamento a favor dos retornos forçados, continua a gerar sofrimento humano e perda de vidas.
Os números, que representam vidas humanas, são chocantes. Entre 2017 e 2021, pelo menos 8.500 pessoas morreram ou desapareceram e 95.000 foram forçadas a regressar à Líbia, incluindo 32.425 pessoas só em 2021 – o número mais elevado de retornos forçados jamais registado. Na Líbia, as pessoas resgatadas do mar enfrentam tratamento degradante, como extorsão, tortura e, demasiadas vezes, a morte.
Os Estados europeus que não providenciam capacidades de buscas e salvamento adequadas e pró-ativas e que aumentam a capacidade da guarda-costeira líbia estão inegavelmente a apoiar os retornos forçados para a Líbia, onde as detenções e os abusos são a norma. A presença da MSF no Mediterrâneo central é resultado direto do progressivo e vergonhoso afastamento da capacidade naval de buscas e salvamento pró-ativa e liderada pelos Estados no mar Mediterrâneo”, frisa o representante da MSF para as operações de buscas e salvamento, Juan Matías Gil.
Os horrores pelos quais passam as pessoas refugiadas, requerentes de asilo e outras migrantes na Líbia, quer antes de tentarem atravessar o Mediterrâneo central ou depois de terem sido forçadas a regressar, são muitas vezes inimagináveis. Algumas das pessoas resgatadas pelas equipas da MSF no Geo Barents encontraram a coragem para partilhar as suas histórias e, com estes testemunhos, a organização médico-humanitária documentou o brutal impacto e os angustiantes relatos da violência infligida a milhares de homens, mulheres e crianças encurraladas entre o mar e a Líbia.
Entre os sobreviventes resgatados pelo Geo Barents, 265 pessoas relatam ter sofrido alguma forma de violência, de tortura ou de maus-tratos, e 63 de entre elas contam ter sofrido violência sexual ou outras formas de violência de género.
Os polícias, a guarda-costeira, os militares não se importam connosco. […] Espancaram-me muito, todos eles nos batem. Até desmaiarmos. Até colapsarmos. […] Há tantas punições severas naquele país […] Por que é que a União Europeia está a apoiar estas pessoas? Eu pedi ‘Deus, por favor ajuda-me’. […] Se a Nigéria fosse segura, eu não estaria nesta terra. […] Quando me estava a preparar para esta terceira vez, disse ‘Deus, prefiro morrer no mar a ser mandado de volta para os centros de detenção líbios’. Chorei e chorei. E, nesta terceira vez, entrei noutro barco”, conta um homem de 25 anos, oriundo da Nigéria.
MSF desenvolve atividades de buscas e salvamento no Mediterrâneo central desde 2015
De acordo com testemunhos recolhidos a bordo do Geo Barents, 84% das 620 ocorrências de violência que foram relatadas às equipas da MSF por sobreviventes resgatados tiveram lugar na Líbia – destas, 68% foram reportadas terem acontecido durante o ano que antecedeu o resgate. Um número significativo destas ocorrências deu-se após as pessoas terem sido intercetadas pela guarda-costeira líbia e, subsequentemente, fechadas em centros de detenção. Sobreviventes resgatados pelo Geo Barents contam que a violência foi cometida por guardas dos centros de detenção (34%), pela guarda-costeira líbia (15%), por polícias militares ou não-estatais (11%) e por contrabandistas/traficantes (10%).
Nestas 620 ocorrências de violência incluem-se agressões físicas, tortura, desaparecimentos forçados, raptos, detenções e encarceramentos arbitrários – sobretudo na Líbia, mas também durante as interceções e retornos forçados, frequentemente múltiplos, feitos pela guarda-costeira líbia.
As equipas da organização médico-humanitária documentaram ainda níveis substanciais de violência contra mulheres e crianças – 29% eram menores, o mais novo com 8 anos, e 18% eram mulheres.
A líder da equipa médica da MSF no Geo Barents, Stephanie Hofstetter, explica que “as mais prevalentes consequências para a saúde das ocorrências de violência registadas estão ligadas a traumatismos contusos, queimaduras, fraturas, ferimentos na cabeça, ferimentos relacionados com violência sexual, transtornos de saúde mental”. “Outras consequências incluem deficiência física de longa duração, gravidez, desnutrição e dor crónica”, acrescenta.
A MSF desenvolve atividades de buscas e salvamento no Mediterrâneo central desde 2015, tendo trabalhado já com oito navios diferentes, sozinha ou em parceria com outras ONG. Nestes cerca de sete anos, as equipas de buscas e salvamento da MSF no Mediterrâneo central prestaram assistência a mais de 80.000 pessoas.
A embarcação com que a organização médico-humanitária está atualmente a operar, o Geo Barents, navegou já por 11 vezes até à zona de buscas e salvamento, entre junho de 2021 e maio de 2022 – foram feitas 47 operações de salvamento e resgatadas 3.138 pessoas e recuperados os corpos de mais outras dez que morreram no mar. De entre as pessoas resgatadas pela MSF no Mediterrâneo central neste último ano, 34% eram crianças e delas 89% eram menores não acompanhados ou que estavam separados das suas famílias. A bordo deste navio foram providenciadas 6 536 consultas de cuidados primários de saúde, de saúde sexual e reprodutiva e de saúde m
Ignorados pedidos da MSF para desembarque em local seguro
Desde o início das operações de buscas e salvamento com o Geo Barents em junho de 2021, a MSF tem também continuado a observar a normalização dos impasses no mar e a angústia que é gerada por esta prática.
Os pedidos das equipas da MSF para atribuição de um local seguro para o desembarque de sobreviventes têm sido sistematicamente ignorados ou recusados pelas autoridades de Malta, enquanto que os que são dirigidos às autoridades de Itália são respondidos com cada vez maiores demoras. Os impasses no mar impedem o acesso imediato a uma avaliação completa das necessidades médicas e de proteção e prolongam o sofrimento dos sobreviventes.
Mudar esta política mortal de migrações é não apenas necessário, mas também possível. A Europa tem demonstrado no contexto da crise na Ucrânia que pode levar a cabo uma abordagem humana nas migrações forçadas. A proteção da vida de todas as pessoas deve ser aplicada independentemente da raça, género, país de origem, convicções políticas ou religiosas, e tratamento igual – com respeito pelos direitos e dignidade das pessoas – tem de ser dado a quem procura a segurança às portas da Europa.
SIC Notícias/Médicos Sem Fronteiras
Imagem: ANNA PANTELIA/ MSF