30.10.2022 –
Partilham descobertas, reagentes e até DNA “partido em milhões de pedacinhos” para ‘caçar’ vírus a tempo de proteger a população. É um trabalho em rede para acelerar soluções. São portugueses e foram os primeiros a sequenciar o vírus da ‘monkeypox’.
“Se o meu laboratório identifica uma metodologia qualquer que pensamos que possa ser útil a outros laboratórios a nível mundial para detetar, caracterizar ou para sequenciar o genoma de algum microrganismo, nós partilhamos imediatamente, em canais de divulgação científica. É um trabalho em rede”, explicou à Lusa o investigador João Paulo Gomes, do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA).
É assim que se divulgam descobertas em bases de dados públicas internacionais e “ficam de acesso livre” para serem submetidas ao “escrutínio de toda a comunidade científica”. Até o Twitter serve para pedir comentários. A partilha, em vez da competição, foi “das poucas coisas boas que a pandemia” trouxe.
Porque o importante é identificar o mais depressa possível o agente – seja ele vírus, bactéria ou outro microrganismo –, perceber o seu comportamento e ajudar as autoridades de saúde pública a protegerem as populações, a ajustar vacinas, por exemplo.
Portugal participa em diversos projetos europeus com consórcios com França, Reino Unido, Espanha, Itália, Luxemburgo, Suécia e Dinamarca. O trabalho é dinâmico e em equipa: “Um país desenvolve determinada metodologia, outro país outra, juntamos tudo, fazemos reuniões periódicas e divulgamos isto cientificamente.”
Segundo contou à Lusa, Portugal contribui “não só na parte laboratorial, associada à nossa capacidade de sequenciação, mas também na parte de desenvolvimento de ‘software’ para permitir uma melhor análise das genómicas que são obtidas com esses equipamentos”.
O responsável do Núcleo de Bioinformática do Departamento de Doenças Infecciosas do INSA conta que, nos últimos dois anos, Portugal, envolveu-se em meia dúzia de projetos europeus, todos eles na área “do desenvolvimento e otimização de metodologias para o combate a estes microrganismos – sobretudo vírus – que estão a emergir e com grande capacidade de disseminação”.
O espírito de partilha também se manifestou este ano, com o surto de ‘monkeypox’. “Conseguimos trabalhar de uma forma muito robusta e rápida, divulgando à comunidade cientifica não só que este [vírus] tinha o potencial para ser menos agressivo – pois normalmente está associado aos países africanos da bacia do Congo e este estava mais associado aos países da África Ocidental –, mas também que, afinal, tinha muito mais mutações do que aquilo que a comunidade científica poderia esperar”, conta João Paulo Gomes.
Resultado: Portugal foi o primeiro país a identificar a sequência genética do vírus e a partilhá-la.
Quanto ao coronavírus, que provocou a pandemia de covid-19, o investigador explica que Portugal foi um dos primeiros países na Europa a ser ‘invadido’ em março deste ano por uma subvariante, a BA.5, o que lhe deu ‘vantagem’ na investigação.
O trabalho em rede foi essencial. Alguns países, o próprio Centro Europeu de Controlo de Doenças e a Organização Mundial de Saúde, pediram a Portugal a divulgação de resultados a nível de eficácia vacinal contra esta subvariante.
Neste clima de colaboração, também se partilham reagentes, o que, em Portugal, veio facilitar a sequenciação e monitorização dos casos de ‘monkeypox’: “Houve laboratórios que conseguiram desenvolver um método de sequenciação mais rápido (…) e emprestaram bocadinhos desses reagentes a vários países para que eles pudessem testar no próprio país e fazerem a divulgação dos resultados.”
O objetivo final é sempre acelerar a investigação e as soluções, porque, afirma o investigador, a saúde pública em Portugal “não é diferente da saúde pública da Irlanda, do Reino Unido, ou de Espanha”.
Este espírito de partilha e trabalho em rede também se mostra na INSAFLU, uma ferramenta bioinformática desenvolvida no INSA e que permite a qualquer laboratório do mundo – de forma rápida e simples – analisar e integrar a análise do genoma na vigilância de diferentes vírus. Começou por ser maioritariamente para o vírus da gripe (influenza), mas já foi adaptada a outros microrganismos.
“Mal foi libertado o genoma de SARS-CoV-2, começamos a adaptá-la para poder ser a ferramenta de base para a análise do genoma deste novo vírus em Portugal”, contou à Lusa Vitor Borges, especialista em genética molecular e responsável pela plataforma, também já usada para analisar o vírus da ‘monkeypox’.
“Temos utilizadores de todos os continentes, que podem criar a sua conta na nossa plataforma e analisar os seus dados”, explica, sublinhando a vantagem de não precisar que os utilizadores tenham especialização muito avançada em bioinformática.
E o que é que alimenta a plataforma? São os dados que saem dos aparelhos de sequenciação. “Imaginemos o DNA partido em milhões de pedacinhos muito pequenos. É esse material de base que é introduzido nesta plataforma e que permite depois montar, reconstruir, a sequência do vírus”, explica o investigador.
Lembra que a vigilância genómica tem sido mais constante durante o último ano: “Normalmente para a gripe há um foco no período sazonal, para tentarmos perceber que variantes estão a circular e para que – sendo um laboratório de referência – se possa informar as entidades internacionais sobre o que é que está a circular em Portugal e nos outros países.”
“Só esse conhecimento à escala global é que permite, por exemplo, desenhar vacinas que sejam mais adequadas e que possam prever as variantes que vão circular”, acrescenta.
Também Raquel Guiomar, responsável pelo Laboratório Nacional de Referência para o vírus da Gripe e Outros Vírus Respiratórios do INSA fala na importância deste trabalho em rede e da colaboração científica internacional em que Portugal participa.
Desde dezembro de 2021, integra a Comissão Coordenadora da Rede de Vigilância das Doenças Respiratórias Virais (DNCC) do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), que aconselha o ECDC sobre matérias relacionadas com as doenças respiratórias virais.
“O laboratório faz não só a deteção, mas também o isolamento do vírus da gripe. E são estes vírus que são enviados para o laboratório de referência da Organização Mundial de Saúde, em Londres, para uma caracterização mais aprofundada”, refere.
* Susana Oliveira (texto) / Lusa