21.2.2023 –
Com a invasão russa à Ucrânia, há um ano, seguiu-se uma verdadeira debandada de empresas, marcas e serviços com atividade na Rússia, em resposta ao início da guerra. Mas houve duas grandes marcas, do mesmo grupo empresaria, que escolheram continuar a sua atividade em territórios russo: Auchan e Leroy Merlin, ambas do grupo francês Mulliez.
Agora, uma investigação de jornalistas internacionais revela que estas duas empresas têm estado, de forma oculta, a ajudar soldados russos que combatem na Ucrânia e a fornecer-lhes produtos, como cigarros ou lâminas da barba, em caixas ‘disfarçadas’ como ajuda humanitária.
O caso é revelado numa investigação conjunta do jornal Le Monde e do portal The Insider, que tiveram acesso a informações internas, emails, comunicações e mensagens, faturas e imagens e vídeos, divulgados nas redes sociais, que foram verificados e que se confirmou serem verdade o que mostram: caixotes enviados pela Auchan e pelo Leroy Merlin para ajudar soldados russos na frente de guerra.
No início da invasão, as duas empresas justificaram a opção de continuar atividade na Rússia. “O nosso trabalho é garantir todo o possível para que os habitantes de países onde temos operação tenham acesso a alimentos de boa qualidade a preços acessíveis, e assim responder às necessidades alimentares da população civil”, sustentou a Auchan em comunicado, enquanto o Leroy Merlin defendeu: “não vemos razão de penalizar os nossos funcionários russos por uma guerra que não escolheram”.
Mas ambas as empresas, em especial a Auchan, parecem estar a ajudar mais do que os funcionários ou os civis russos.
A investigação revela emails enviados por Natalia Zeltser, responsável da região de São Petersburgo da Auchan, a pedir para que os colegas juntassem uma série de produtos para “um envio de ajuda humanitária”. Tudo normal até aqui, só que o anexo de produtos pedidos que segue no anexo da comunicação enviada mostra alguns produtos que não coincidem com o que é enviado nestes casos, e que seriam para apoiar, por exemplo, mulheres e crianças.
Na lista surgem itens como meias e sapatos de tamanho acima do 40, cigarros e isqueiros (que nunca são enviados como ajuda humanitária), ou lâminas de barbear. Nenhuma referência a produtos que poderiam ser entregues a mulheres ou crianças afetados pela guerra, mas percebe-se que seriam para apoiar muita gente: mais de mil tubos de pasta de dentes e 500 isqueiros, o que seria o suficiente para dois batalhões russos.
O valor total daquele pacote humanitário, pedido em março do ano passado, ultrapassa os 25 mil euros. Outros ter-se-ão seguido.
Nos seguintes emails, a responsável da marca em São Petersburgo pede à sede russa da empresa que o ‘pacote de ajuda humanitária’ entre nos registos como tendo sido pago ou comprado por entidades legais russas, sendo que recebe depois uma lista de volta.
As faturas, alegadamente fabricadas mostram que nos registos da loja os produtos deram saída como tendo sido comprados por aquelas entidades, mas um gestor logístico daquele supermercado na cidade russa garante que a Auchan na realidade ofereceu do próprio stock todos os itens que foram enviados no alegado ‘pacote de ajuda humanitária’.
A investigação chegou às entidades referenciadas nos emails, sendo que algumas assumem que encomendaram os pacotes de ajuda humanitária, e dizem sem rodeios que os mesmos foram entregues a militares russos, sem no entanto adiantarem detalhes. Outros tentam esconder o verdadeiro fim, e dizem que as centenas de isqueiros eram para os funcionários, que temiam ficar sem luz, e que serviriam para acender lareiras e fogões a gás, ainda que não saibam responder porque precisavam de centenas daquele produto, quando só têm sete empregados.
As 10 empresas têm uma ligação em comum: todas prestam serviço à Passazhiravtotrans, empresa do Estado russo que gere os transportes públicos na cidade de São Petersburgo, e que por sua vez pertence ao Comité de Transportes da cidade, e consequentemente ao Governo.
Os documentos mostram que não foi caso único na Auchan de São Petersburgo, sendo que há provas de que também as lojas em outras regiões organizaram ‘pacotes humanitários’ semelhantes, alguns enviados para o Donbass, por exemplo.
Empregados da Auchan aparecem em fotografias divulgadas junto a responsáveis de associações pró-Rússia que têm ajudado militares e que se referem aos funcionários do supermercado como “nossos parceiros”.
A Investigação revela ainda que a Auchan está também a ajudar as autoridades russas a combater a fuga de mobilizados para a guerra, tendo recolhido dados sobre os registos dos empregados, ainda antes da invasão ter começado e, já depois de Putin anunciar a mobilização, segundo revelam testemunhas, apresentaram a funcionários elegíveis o documento para se alistarem, ou uma carta de rescisão, caso não aceitassem ir para combater a Ucrânia.
Pedro Zagacho Gonçalves/Multinews