12.4.2023 –
O movimento #MeToo está a abanar o meio académico em Portugal. O artigo As paredes falaram quando ninguém se atrevia, publicado num livro sobre assédio sexual nas instituições universitárias, acusa dois membros do Centro de Estudos Sociais de Coimbra de assédio sexual a jovens estudantes e investigadoras. Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins assumem ser os visados nas acusações mas negam qualquer comportamento inapropriado. Em resposta à RTP, o centro de investigação da Universidade de Coimbra está já a investigar as denúncias e garante que não se demite de responsabilidades.
As autoras do artigo, a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a norte-americana Myie Nadya Tom, estiveram no CES como, respetivamente, investigadora de pós-doutoramento (com uma bolsa Marie Curie) e estudantes de doutoramento – o que facilitou a identificação do CES como instituição referida no artigo.
Após seis anos da fundação internacional do movimento #MeToo, as acusações de assédio e violação na instituição de Coimbra são uns dos primeiros relatos do género em Portugal nos quais se identifica os acusados.
Os dois académicos da Universidade de Coimbra assumiram ao DN reconhecer-se “como retratados” na publicação, negando contudo qualquer acusação.
Alvo de “cancelamento”
Depois de assumir que é retratado como “O Professor Estrela” pelas três antigas estudantes do CES, Boaventura Sousa Santos escreveu, em comunicado ao DN, que “é evidente que [o artigo] se refere ao Centro de Estudos Sociais”, e que a instituição é “um alvo apetecível por muitas razões”.
Na opinião do prestigiado sociólogo da UC, o último capítulo do livro “foi certamente escrito sob aconselhamento jurídico para, não mencionando nomes, evitar ardilosamente queixas judiciais”. Boaventura Sousa Santos admitiu ainda que se vê como alvo de “cancelamento”.
“Nas instituições académicas norte-americanas tornou-se um pesadelo. Colegas (homens e mulheres) injustamente acusados e até ilibados em processos judiciais internos (caso do Professor Comaroff) continuam a ser vilipendiados. Pelos vistos, vai-se alastrando pelo mundo”, escreve.
Diz ainda que o que é descrito é “uma distorção e uma falsificação da realidade” a seu respeito e a respeito do CES.
“O ambiente académico de proximidade e de crescimento coletivo que criámos ao longo de décadas é arrasado de uma maneira vil e inqualificável. (…) O artigo é um típico produto de um ataque ‘ad hominem’ em que o mundo académico começa a ser fértil”, escreve ainda, acrescentando: “o objetivo é lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor”.
O neoliberalismo, continuou, “está a roubar a alma da solidariedade e da coesão social e criar subjetividades que canalizam os seus ressentimentos para acusações de que sabem não poder haver contraditório eficaz”.
“Chama-se a isso cancelamento”.
“Ao contrário do que o capítulo ora publicado ardilosamente pretende insinuar, quero reiterar que em momento algum agredi física ou sexualmente [uma das autoras do artigo] ou qualquer outra pessoa”, escreveu, lembrando que “em nenhum momento” foi alvo de queixa, na academia, por assédio ou comportamentos inapropriados.
As três investigadoras e autoras do livro não se conheciam nem sabiam das histórias comuns de assédio sexual, tendo apenas em comum o percurso académico no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.Souberam da existência umas das outras através de um evento que deu nome ao artigo “As paredes falaram quando ninguém se atrevia”. Sem uma definição temporal exata, é referido que no outono de 2018 apareceram vários graffitis nas paredes do CES e da UC.
“Embora os graffiti anónimos (contámos oito) não tenham provocado um escândalo público (inter)nacional, reforçaram uma (…) rede de murmúrios, que nos permitiu entrar em contacto, partilhar, e escrever este capítulo em conjunto”, escrevem as autoras no resumo do livro.
Tudo o que era escrito nas paredes era “prontamente apagado”, segundo a publicação. Ao DN, um membro do CES que não se identificou, confirmou que viu vários graffiti “nas casas de banho” por altura das celebrações dos 40 anos do Centro de Estudos Sociais.
O Centro de Estudos Sociais de Coimbra está a investigar as denúncias de assédio que envolvem os dois membros da academia.
Em comunicado numa resposta à RTP, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra começou por esclarecer que embora as instituições académicas e de investigação sejam “tradicionalmente apresentadas como ambientes neutros e seguros”, não são “alheias ao sistema social e cultural que produz e reproduz relações de poder desiguais”.
Admitindo que são diversas as formas de desigualdade, violência e abuso e que são “problemas transversais às organizações”, o CES “não se coloca fora desta discussão importante, nem se demite da responsabilidade que tem na promoção efetiva de um ambiente de trabalho científico mais igualitário e livre de todas as formas de assédio”.
A instituição refere ainda que não sendo “fenómenos novos”, promoveu, nos últimos anos,” respostas institucionais para os enfrentar”.
O CES garante estar “comprometido com o tratamento diligente deste tipo de ocorrências” e, por isso, “decidiu averiguar a fundamentação das alegações” mencionadas no livro.
“Nesta medida, o CES irá constituir num curto prazo uma comissão independente à qual caberá a identificação de eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas anti-éticas referidas naquele capítulo. A comissão será composta por dois elementos externos, um dos quais lhe presidirá, e pela Provedora do CES. Os membros externos a convidar terão competências reconhecidas no tratamento de processo análogos”, esclarece ainda.
Contactada pela RTP, a UC afirma que o Centro de Estudos Sociais “é uma associação privada sem fins lucrativos, estatutária e juridicamente independente da Universidade de Coimbra”.
A Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra afirmou à RTP que só teve “conhecimento destas denúncias através da comunicação social” e admite a preocupação no assunto.
“Ainda estamos a avaliar internamente, a perceber o que aconteceu”, disse João Pedro Caseiro, acrescentando que a AAC pretende “mostrar abertura para que as pessoas em causa possam contactar” a instituição estidantil.
“Seremos sempre uma via de acompanhamento e encaminhamento deste tipo de situações”.
RTP