OPINIÃO QUE CONTA: “O barómetro da moralidade” (Luís Miguel Pato)

 

“Recentemente vi o famosíssimo – músico/instrumentista – Tom Waits no filme Drama/Comédia – “O Rei Pescador”, de 1991, de Terry Gilliam, desempenhar o papel de um vagabundo que aborda a sociedade no geral e principalmente o impacto devastador que o sistema capitalista tem sobre uma parte da população que não é abastada. Neste caso, trata-se da maioria. Os menos afortunados têm um papel essencial na retitude autómata da vida contemporânea, defende a sua personagem. Esta dedução deve-se à conclusão, quase epifânica, de que estas pessoas têm o papel de lembrar-nos o quão perto estamos do abismo. Aliás, à medida que passamos por eles diariamente, nesses “não lugares” – contextos que são normalmente espaços públicos providos de identidade familiar que têm apenas um papel de prestar um serviço geral – a que eles chamam – “lar”, memoram-nos constantemente que estamos a um mero passo do mesmo precipício em que se encontram. Por isso, defende a personagem de Waits, mais do que lhes dar uma esmola, nós estamos-lhes a pagar essa memória. É como se fosse uma taxa ou uma portagem.

É em Friedrich Nietzsche que se assiste ao delinear de um esboço social num binómio que determina que algumas pessoas – poucas – foram talhadas para feitos grandiosos. Vejam-se os exemplos de Walt Disney, Cristiano Ronaldo, Luís Figo etc., Os restantes – a maioria – é a horda. Isto é, são os menos afortunados que tentam sobreviver no dia-a-dia com o pouco que conseguem agremiar entre o zumbir das corridas constantes com que pautam a sua vida até ao dia em que morrem.

Quem de nós que trabalha todos os dias entre 7 e 8 horas por dia, 7 dias por semana, não fica tenso? Quem nunca colocou em causa a sua própria existência; isto é o seu modo de vida – que na maior parte dos casos é constantemente repetitivo. Aliás, quem de nós nunca teve a ideia de se despedir do emprego sem olhar para trás. Simplesmente sair; ir embora. Quiçá até viver dos elementos; isto é, da natureza. No entanto, nesses momentos lembramo-nos dos menos afortunados – e concluímos: “bem, pelo menos, não ando a pedir esmola para sobreviver”. Pensamos nas responsabilidades já assumidas e continuamos a marchar ao som do batuque da rotina que – quer queiramos, quer não – aos poucos acaba por sugar a aura da nossa unicidade e até a essência do que é ser humano – os nossos processos de socialização. Porque no sistema capitalista dominante, até estes momentos são avaliados – acho que lhe chamam: “taxa de eficiência”. Aliás, através do impacto devastador da pandemia, pode ver-se que uma incessante liquidez proveniente da obrigatoriedade de colidir a esfera profissional com a doméstica. Assiste-se ao desmoronar não só dos laços sociais, como também, e bem mais grave, da delicadeza dos que se encontram no seio das nossas próprias famílias. No fundo, a pergunta impõe-se: neste novo contexto, quantos de nós conseguimos delinear a distinção entre os domínios profissional e o pessoal?

A Cristalização do confinamento

O título não é meu, é de Bernard- Henri Lévy. No entanto, concordo com ele. Hoje, considera-se que o confinamento é a solução para todos os males da pandemia. Porém questiono: será que o principal combate contra esta tragédia não está na responsabilidade e no dever que cada um de nós tem, enquanto cidadão? Posso estar enganado, mas será que a culpa não é de todos nós?

A história mostra que o confinamento nunca foi a melhor solução. Tal pode ser visto em Anne Frank, Franz Kafka, Dostoiévski etc. que descrevem este tipo de imposição como sendo algo contranatura, por um lado. E, por outro, independentemente do fausto e do luxo do contexto físico que serve este propósito de restringir circulação, esta obrigatoriedade impõe uma presença quase sempre sombria, empestada e munida de animosidade. Isto ocorre porque, no fundo, independentemente das circunstâncias, trata-se de um aprisionamento do que é do domínio material e do que compõe a alma de cada um de nós. Ou seja, só a ideia de estarmos limitados é pior do que o próprio cárcere físico…

Por isso, e como Albert Camus defende na “Peste”, também nós, durante este flagelo social, causado pelo Covid19, como subterfúgio pensamos que haverá sempre alguém mais preso do que eu. Isto é, pensamos que eu posso estar mal, mas há quem esteja pior. É, no fundo, o que ocorre quando nos cruzamos com os menos afortunados e pensamos – eu posso ser escravo de um sistema, mas pelo menos não durmo no chão de uma dependência bancária…  Não há nada mais humano do que menosprezar as nossas circunstâncias, por muitas más que estas sejam.

Os Polícias do Covid

Por fim, neste “novo normal”, há quase um ano que este vírus tem conseguido tornar as outras realidades insignificantes. E isto ocorre não só na vida, como também em termos de economia de informação e de dietas mediáticas. Aqui pode ver-se que os outros assuntos estão num estado letárgico. Ou seja, encontram-se omitidos sob a incandescência da constante irradiação da pandemia no espaço mediático. De repente, somos todos, de forma direta ou indireta, imprudentes e levianos. E há já algum tempo que somos condenados pelos nossos vizinhos e familiares. Qual “Kristallnacht” 2.0, qual quê…   

Apresento-vos, então, os “Polícias do Covid”. São sujeitos anônimos que, como Kapos contemporâneos, se auto intitulam como sendo vigilantes, endeusados por si próprios, que têm a “divina” missão de “policiar” e “punir”, não só nas redes sociais, como na via pública quem não cumpre com as normas da DGS. E fazem-no de uma forma bem auditiva, não vá alguém não se aperceber do seu reparo e da tonicidade da musculatura balofa da sua intervenção. Porém, é importante lembrar que diagnósticos médicos não são leis. O mundo denominou os profissionais de saúde como sendo fundamentais e heroicos, e bem. No entanto, o mundo não parou de girar. Não somos todos profissionais de saúde; nem sequer Portugal é composto por 10 milhões de epidemiologistas e muito menos já se chegou ao ponto em que curiosos e curandeiros sejam capazes de fazer milagres ou de impor a lei…  Que eu saiba, ainda vivemos numa república e cada cidadão tem deveres e direitos iguais. E há profissionais que têm a incumbência de fazer cumprir a lei e não meros curiosos que de uma forma voluntariosa e puramente exibicionista apenas estão à procura de protagonismo e não do bem comum.

No fundo, resume-se às ações de cada um de nós.   

Luís Miguel Pato

Profissional e docente em Ciências da Comunicação”