Entrevista com o “chef” Mário Moreira

Mário Moreira é Chef de Cozinha, nasceu em Lourosa (Santa Maria da Feira) e está radicado em Guimarães há 25 anos. “Ouçam” como ele respira:

“Considero, que há muitos restaurantes que não têm condições para estarem abertos ao público. Há pouca informação e portanto, muita gente a cair no engodo”

Gastronomicamente, falando, como é que tudo começou?

Aconteceu de uma forma tão natural, diria mesmo quase umbilical, como se de uma herança de ADN se tratasse. Minha mãe, Conceição, foi governanta de uma casa senhorial, “Casa do Paço” em Celorico de Basto, a sua terra natal, durante vários anos. Meu pai, Francisco, conhecedor dos segredos e amanhos da terra, tratava-a como de um jardim. Meu tio, Artur, trabalhava na Alfândega no Porto e passava-lhe pelas mãos todo os tipos de bacalhau e de quando em vez, trazia uma daquelas “guitarras” debaixo do braço para nos deliciarmos. Na amálgama deste conjunto de saberes e sabores, resultou, para bem de toda a família, uma coisa maravilhosa; aprender a comer e comer bem. Foi deste modo, que pela primeira vez, meu pai, me mostrava determinado tipo de ervas aromáticas, as comia, depois de as lavar devidamente e, me incentivava a experimentar. Jamais esquecerei que, entre muitas outras coisas, a primeira vez que comi “Ameijoas à Bulhão Pato” foi na sua companhia, numa das tasquinhas, ao sábado à tarde, na minha terra natal. A exigência na qualidade e a obrigatoriedade dos produtos frescos da horta, foram fatores importantes à mesa que sempre nos conferiu numa opção de alimentação saudável, que perdura, teimosamente, pela positiva, em levar tal mensagem aos nossos filhos.

O facto de seres o filho mais velho trouxe-te outras tarefas culinárias?

Sendo o filho mais velho da família, cedo, bem cedo, me atribuíram múltiplas tarefas de cooperação e entreajuda. Minha mãe quando fazia “ Leite Creme, queimado” fazia-o em enormes travessas, ao domingo, que após a refeição, desaparecia num ápice. Confesso, que foi a primeira sobremesa que fiz, em homenagem a minha mãe. Jamais esquecerei a importância, o significado, o ritual, da matança do porco. Além de ser um dia de festa, tinha uma enorme importância para o orçamento familiar. A generosidade, a fraternidade e a camaradagem da vizinhança mais chegada em ajudar àquele simbolismo foram valores que me marcaram profundamente pela positiva. Em troca do esforço dispensado, os vizinhos, recebiam pequenas dádivas de carne fresca, alguma já temperada em vinha de alhos com folhas de loureiro. Quem fazia esta entrega aos vizinhos generosos era eu e ficava, maravilhado com este sentimento de partilha. A generosidade, a solidariedade, a partilha, foram e são fatores que guardo e fazem parte integrante do meu código de conduta. Em menino, fui o provador e o rapa-tachos de minha mãe. Este legado foi-me transmitido ao longo dos anos. O desenvolvimento do paladar, das papilas gustativas e, do gosto, foi uma constante na minha aprendizagem que aprimorei e desenvolvi ao longo da minha juventude. Após o serviço militar decidi, renunciar àquela que tinha sido a minha primeira profissão, durante dez anos. Terminados alguns anos em, “banho-maria”, decidi inscrever-me numa escola de formação; Escola de Turismo e Hotelaria do Porto, onde obtive vários tipos de formação, designadamente; Cozinha, Mesa e Direção Técnica de Restauração.

Que balanço fazes de todos estes anos ligado à área?

Gastronomicamente falando e, de uma forma geral, como em tudo na vida, a gastronomia teve altos e baixos, talvez mais baixos do que altos. Portugal, considerou e decretou em 2004, a Gastronomia, como Património Cultural. A Unesco, considerou, em 2013, a parte sul de Portugal, que enquadrada na influência da bacia do Mediterrânio, como Património Imaterial da Humanidade, vulgarmente, conhecida como a “Dieta Mediterrânica”, uma das mais influentes e importantes em todo o mundo. Passados estes anos, considero que regredimos de forma significativa e comemos pior do que há 20 anos. Se fizermos um roteiro ao longo do país, com algum rigor, percebemos que desde as Cantinas Escolares do Ensino Básico, Ensino Secundário, Universitário, IPSS, até às Cantinas Hospitalares, constatámos que aí se confecionam as refeições para milhões de portugueses, todos os dias. Verificamos a existência de uma enorme falta de qualidade. As empresas concessionárias, contratadas pelas Câmaras Municipais (escolas primárias),o Ministério da Educação (Escolas EB 2,3 e Secundárias), o Ministério da Saúde (Cantinas Hospitalares), não cumprem os compromissos com o “Caderno de Encargos”. Estas empresas, formam um “cartel” cheio de infrações, não têm fiscalização e portanto, funcionam, acima da lei. Em abono da verdade, devo dizer, que os recursos humanos destas empresas, são tratados como lixo. Um exemplo, chocante; por todo o país, há vários milhares de trabalhadores em exercício das suas funções, com 15, 20, e mais anos de casa e não são efetivos, ou seja, trabalham em situação de contrato. Vivem e trabalham numa situação de instabilidade e precariedade, verdadeiramente, vergonhosa. Desejo denunciar tal situação, pois considero, que com tais práticas, são fortes condicionantes da qualidade alimentar. Estas empresas não utilizam as horas que por lei são obrigadas, no cumprimento da formação profissional, lamentável.

E os entraves também aconteceram?

No universo da nossa restauração, o Receituário Gastronómico Português, da Cozinha Tradicional, com as constantes e sucessivas crises; com os aumentos de impostos, designadamente do IVA; com a saída de milhares de profissionais (empresários, Chefs, Cozinheiros, Empregados de Mesa) para a emigração; empresas que encerraram e muitos milhares de trabalhadores foram atirados para o desemprego; perdemos qualidade competitiva e qualidade na oferta; sobretudo, na cozinha, em que muitas das receitas são adulteradas, em detrimento de produtos baratos e similares que não correspondem; a concorrência desleal, etc.

Todavia, a gastronomia em Portugal, não é só o que acabo de referir. Há enorme qualidade em percentagem significativa, por todo o país. Há em milhares de unidades, espalhadas por todo o país, cujos profissionais, trabalham com afinco, pela defesa, preservação, autenticidade e genuinidade da cozinha portuguesa, com toques de modernidade e de alimentação saudável. Não se pode ignorar a elevada importância dos seus profissionais, com performances de destacar e louvar, pelo seu brio, desempenho e profissionalismo.

Independentemente, dos livros e revistas, para todos os gostos nos escaparates, dos programas de televisão, pouco ou nada se alterou, nos comportamentos alimentares dos portugueses. A verdade é que o estilo de vida dos portugueses mudou bastante, nos últimos anos, mas os hábitos alimentares persistem.

A melhoria do nível de vida trouxe consigo o abandono dos alimentos próprios dos tempos sombrios e de austeridade (cereais, massas, legumes e carnes brancas) em benefício dos alimentos socialmente de estatuto diferente (carnes de primeira, bebidas alcoólicas, doces, o fast food).

Olhando para o passado, tudo o que fizeste, seria feito da mesma maneira?

Naturalmente, que não! Há sempre coisas a corrigir. Como em todos os setores de atividade, há um elevado capital de risco. Quem não arrisca, não petisca…

Hoje, com a sapiência e maturidade, construídos ao longo da vida, teria feito as coisas bem diferentes. Sem nunca perder de vista a gastronomia e toda a sua envolvência, teria apostado, paralelamente, numa formação académica, que me foi negada na minha adolescência e, deste modo, teria o meu próprio negócio, á minha verdadeira imagem e essência.

Todavia, ainda há bem pouco tempo, lá andava eu, pelos corredores e auditórios da Universidade do Minho. Os horários e compromissos da minha exigente profissão, impediram-me de concluir, mas o objetivo, mantem-se, quanto mais não seja, para completar e deste modo, ultrapassar uma enorme desilusão que carrego desde a minha adolescência. Fui empurrado, com 10 anos de idade, como tantos meninos, atirados para o gigantesco exército de trabalho infantil que Salazar criou pela fome e miséria vividas nesse tempo, de más memórias. Meninos, que cresceram e se tornaram, homens e mulheres de forma precoce, sem que tivessem vivido plenamente a sua adolescência.

Os prémios ajudaram…

Gastronomicamente, falando, não me queixo! Recebi alguns prémios, alguns deles, a emprestar as minhas habilidades para vários canais de TV, prova de reconhecimento e mérito, pela devoção, empenho, lealdade, rigor e profissionalismo, com que sempre impus ao meu trabalho. Hoje, estou envolvido num projeto de formação profissional para o IEFP, dando aulas sempre que tenho disponibilidade para o fazer. Sou membro de confrarias gastronómicas. Fui convidado a integrar equipas de “Júri de Prova” nas fases finais em cursos de formação profissional, designadamente; Cozinha, Mesa, Turismo Rural. Encontro-me na preparação de numa fase adiantada para a abertura de um restaurante, mais um, de que serei responsáve

Tenho o hábito de dizer e, digo-o muitas vezes, a melhor gorjeta, o melhor prémio, que um dedicado profissional pode obter, é a plena satisfação das espectativas do cliente que nos visita e muito desejamos que volte.

O que é que faz falta à Cozinha Portuguesa? Que mudanças farias?

Faz falta muita coisa e, como consequência, faria muitas mudanças.

No topo da pirâmide, ao nível do Ministério da Saúde, faz falta, uma política de saúde e de alimentação saudável. No Ensino Escolar Básico, a introdução curricular desta temática, como forma de sensibilizar e introduzir a importância que têm os alimentos na nossa saúde, mental e física. Permitir que as crianças e adolescentes possam identificar cada um dos alimentos e deste modo, em consciência, tomar em liberdade as melhores e saudáveis opções. Teríamos, seguramente, resultados inquestionavelmente, ao nível da prevenção e da melhoria da capacidade de resposta em termos de resultados de sucesso escolar, avassaladoramente, bem diferentes. O país respiraria bem melhor, além de melhor disposição e alegria, fatores importantes, para o aumento de rendimento, da capacidade de resposta e das faculdades cognitivas, mas também na consequente melhoria da qualidade de vida da população portuguesa. Muitos milhões de euros se poupariam ao erário público com estas medidas.

Tratar bem da saúde, fazer as coisas certas, deve começar por baixo… que medidas devem ser tomadas?

Hoje, o que se passa, é chocante nos recursos que se gastam a combater doenças, como; a obesidade, cardiovasculares, infetocontagiosas, o envelhecimento precoce…

A implementação de boas escolas profissionais de hotelaria e turismo por todo o território. Somos um país riquíssimo na criatividade e diversidade gastronómica. Há uma imperiosa necessidade de dotar, os profissionais no ativo e dos que procuram esta atividade, com as melhores competências, para deste modo, poderem identificar, defender e aplicar na prática o nosso inigualável receituário gastronómico. Deparamo-nos com uma situação verdadeiramente, surreal, queremos pessoas qualificadas para trabalhar e não temos.

Intransigência para todos que não têm qualquer tipo de conhecimento na área e desejam a qualquer custo abrir atividade, ou seja, por outras palavras, deveria existir a obrigatoriedade de uma certificação formativa, como há noutras áreas.

Dotar de meios técnicos e humanos a fiscalização (ACT-Autoridade para as Condições do Trabalho; Delegação de Saúde; Câmara Municipal; ASAE-Autoridade da Segurança Alimentar Económica; Autoridade Tributária; Segurança Social) é muito deficiente e em muitos locais, quase nem existe: ao nível da formação profissional dos recursos humanos; ao nível da aplicação prática das condições de higiene alimentar; ao nível das condições laborais; ao nível da formação obrigatória prestada pelas empresas. A impunidade, em Portugal ainda compensa.

Até que ponto os cozinheiros têm a cozinha que merecem? Não há no meio “muita parra e pouca uva”?

Na sequência do meu raciocínio, atividade. São pessoas que chegaram dos mais diversos pontos de dentro de fora do país e devo dizer que, há muita gente ligada ao ramo, mas deveria procurar trabalho ou negócio noutra sítios, com dinheiro ou sem ele, espreitaram uma oportunidade de negócio. Montaram um restaurante sem conhecerem ou saberem dos seus requisitos mínimos. Esta situação veio criar muitos constrangimentos: adulteração e alteração de ementas; ignoram o receituário tradicional do meio; desrespeitam as mais elementares regras de convivência laboral. Fogem aos impostos e criam a calamidade de uma situação de verdadeira economia paralela. Naturalmente que trabalhar com esta casta de gente constitui uma verdadeira desilusão, Em abono da verdade é importante salientar que uma significativa dose de empresários não se reveem nestas práticas e, parabéns por isso. Pode ser um caminho mais longo e demorado, mas é mais digno, mais honesto, mais sustentável e, têm o seu futuro, seguramente, assegurado, os restantes, os de “muita parra e pouca uva” não conseguiram resistir. Mais cedo ou mais tarde, independentemente, de continuar a haver restaurantes para todos os gostos, será feita, inevitavelmente, uma seleção natural das coisas…Considero, que há muitos restaurantes que não têm condições para estarem abertos ao público. Há pouca informação e portanto, muita gente a cair no engodo.

A pretensa qualidade dos pratos faz com que agora pague se mais por menos. Não será que isto não passa de uma moda que pode ter os dias contados?

Goste-se ou não, a globalização veio para ficar. Os processos, as técnicas, o fator tempo, as tecnologias, são um conjunto de ingredientes que constituem de forma determinante na melhoria do resultado final. Do resultado final também deveria fazer parte o conhecimento e o saber de que não está na quantidade, mas na qualidade e na importância de cada um dos elementos que ingerimos. Se ficamos satisfeitos ou não, se as expectativas correspondem ou não. É tudo muito relativo. Todavia, a qualidade preço é outra história e isso depende muito de vários fatores, do conceito, do serviço, da qualificação dos seus profissionais e, de toda uma atmosfera, própria de casa para casa. Não acredito em modas. Credito na criatividade e imaginação, na honestidade e competência, no profissionalismo e rigor. Acredito que em resposta à pergunta nº quatro, na implementação do que defendo, seria uma enorme reviravolta em todo o processo de alimentação em Portugal.

O património gastronómico português é dos mais ricos e saudáveis de todo o mundo e portanto não se compadece com modas. Tem de ser defendido com conta peso e medida. Ter de haver, constantemente, inovação sobretudo ao nível da sua apresentação sem descaracterizar a sua verdadeira essência. Tem de ter sempre uma apresentação, sóbria, colorida, apelativa e bem confecionado com toques e requintes de modernidade, preservando deste modo, a nossa memória, a nossa identidade, mediterrânica/atlântica.

Olhando para o futuro, que podem os apreciadores esperar de ti? Que perspectivas tens para o futuro?

Vou continuar a trabalhar como até aqui, de forma empenhada, com responsabilidade; pela melhoria e sensibilização desta temática a começar nas escolas básicas, sem isto e, porque é de pequenino que torce o pepino”! Como já referi, estou envolvido em vários projetos e assim continuarei no combate, contra a importação de certos hábitos estranhos (de que bife com batatas fritas e re-fritas são exemplos terríveis, como o são também o fast food, as carnes processadas) generalizações de modo apressados de comer (como o desequilibrado café ou chá açucarado com torradas ou bolachas e compota a substituir refeições principais), carência crescente dos meios financeiros em certos grupos sociais e pequena capacidade inventiva em confecionar. Por este andar estão perigosamente a restringir cada vez mais as possibilidades de escolha e a empobrecer as refeições do dia-a-dia. É de pequenino que se aprende a gostar de tudo. Como há-de uma criança não tentar rejeitar comida quando a seu lado, pai mãe, avós ou irmãos mais velhos se dão ao “prazer” insensato e reprovador de dizer não gostam disto ou daquilo. Ora é sabido que as crianças gostam de copiar os adultos. É imprescindível e urgente que nos esforçamos para que os nossos filhos comam mais variedade, mais vezes e em menos quantidades. Este é o meu principal combate.
António Veríssimo

mário moreira