Com o turismo como um dos motores económicos, o surto de covid-19 surgido em Reguengos de Monsaraz (distrito de Évora), em junho, foi uma “sombra” que afastou visitantes, mas o concelho já começou a voltar aos roteiros dos turistas.
Acompanhado pela mulher e sentado numa das mesas do bar que serve de apoio à praia fluvial de Monsaraz, no concelho de Reguengos de Monsaraz, António Pereira, de 56 anos, rumou de Torres Vedras (distrito de Lisboa) para umas férias no Alentejo e não perdeu a oportunidade para um banho na água do Alqueva.
“Viemos conhecer a praia fluvial. Estou a gostar, calor e água não faltam, apesar de o [nível da água do] Alqueva estar um bocadinho baixo”, afirma à agência Lusa.
O surto de covid-19 num lar, que culminou com 18 mortos, não fez o casal duvidar da deslocação ao município: “Para vir a Reguengos não pensei nisso. Isso foi no lar, não assusta, e em Torres Vedras também há surtos e mortos. Queria conhecer a praia, até estou agradado com o lugar”, argumenta António Pereira, alojado “para o lado de Alandroal”.
A partir do bar, avista-se a praia fluvial. Com o calor a fazer-se sentir, os toldos colocados no areal estão cheios, com pessoas a descansar à sombra, sendo idêntico o cenário debaixo dos mais de 30 chapéus de sol, do outro lado da praia. Na água, também estão dezenas de pessoas.
Rui Parreira, de 63 anos, reside em Setúbal, mas explora este ano, com outro sócio, pela primeira vez, a concessão de um bar na praia fluvial. As portas abriram no início de julho, quando já decorria o surto de covid-19 no lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (FMIVPS).
“Eu até achei que havia muita gente, mas dizem-me que, comparativamente com outros anos, não tem estado nem a 50%. Julgo que faltam cá os espanhóis, que vinham para aqui à brava”, conta.
Ainda assim, o empresário assegura que “desde finais de julho, já depois de o surto ter passado”, notou “um aumento muito grande de turistas” na praia: “Mesmo hoje, que até nem é dos dias melhores, o parque de estacionamento está cheio”.
Quem vem de Évora para Reguengos de Monsaraz, a seguir à localidade de Vendinha, encontra a adega Ervideira, por entre campos ondulantes com vinhas e oliveiras. O seu enoturismo costuma ser concorrido e atrai sobretudo estrangeiros, mas este ano, devido à covid-19, esteve fechado algum tempo.
“O campo não parou, a produção reduziu a velocidade, mas no enoturismo estivemos dois meses e meio ‘mortos’. Em junho, quando reabrimos, começámos a recuperar, mas apareceu o surto e as pessoas fugiram da zona, as desmarcações caíram consecutivamente”, conta à Lusa Duarte Leal da Costa, responsável da Ervideira.
A empresa “teve de emagrecer” e dispensou pessoal.
Susana Ramalho, que já há quatro anos trabalhava no enoturismo deste produtor de vinhos, mas ficou agora no desemprego, confirma que “a quebra de visitantes foi logo sentida”.
“Começaram os dias de agenda vazia ou em que pouca gente nos visitava”, conta. O mês de agosto é que “veio dar um bocadinho mais de alento e já correu melhor”.
Na cidade, “além dos da terra, já se vê pessoas de fora a passear”.
“Acho que, a pouco e pouco, essa ‘sombra’ que esteve aqui durante estes últimos meses nos vai deixando”, diz Susana, que tem esperança de regressar à Ervideira.
O enoturismo da Herdade do Esporão, em Reguengos de Monsaraz, após três meses de fecho devido à pandemia, reabriu em 09 de junho e essas “primeiras duas semanas correram muito bem”, recorda o responsável, António Roquette.
O “travão a fundo”, evoca, aconteceu com o surto no lar e a afluência apenas retomou “em meados de julho”. Agora, está “em força”, com números parecidos a 2019, embora não tanto à base de estrangeiros, mas sim “com portugueses e famílias”.
Em Monsaraz, apressada para se juntar ao marido e escapar ao sol, Rosa Paiva, de 54 anos, residente na zona de Corroios, Seixal (Setúbal), também está “a descansar uns dias” no Alentejo e quis visitar esta praia fluvial, que “só conhecia da televisão”.
“Viemos aqui parar e fui buscar as toalhas para nos deitarmos um bocadinho”, afirma, relatando já ter estado infetada com covid-19 e ter ficado curada.
No seu entender, “ninguém deve marginalizar a zona”, é preciso é seguir as medidas aconselhadas.
“Mas a gente tem de ir vivendo”, defende, tal como o empresário Rui Parreira, que afiança que os turistas são bem-vindos ao concelho e que é preciso “seguir em frente, senão a economia morre”.
Surto foi “tragédia” para a comunidade
O surto de covid-19 num lar em Reguengos de Monsaraz (distrito de Évora), com 18 mortos, foi uma “tragédia” e “afetou bastante” a comunidade, que enfrentou duas outras “pandemias”, a do medo e a económica, e aguarda respostas.
“Ainda estamos a digerir um bocadinho [o que aconteceu]. Foi um susto, foi como se uma tragédia se abatesse sobre a cidade”, diz à agência Lusa Susana Ramalho, 35 anos, natural do concelho de Elvas (Portalegre), mas a morar em Reguengos de Monsaraz há 14 anos.
Passados mais de dois meses sobre o início do surto no lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (FMIVPS), Susana recorda que, “durante semanas, a cidade ficou deserta”.
“Mal tínhamos saído do confinamento, as pessoas aqui voltaram logo a casa, tudo parou”, incluindo comércio e restaurantes, conta a moradora.
E, quando as mortes de doentes com covid-19 começaram a acontecer, deixaram “marcas” na população: “Havia um sentimento de perda enorme. Numa comunidade pequena como esta, viveu-se muito a dor dos outros, afetou bastante”.
Agora, depois do surto resolvido, com “todos os cuidados”, os habitantes “já começam a tentar ter um bocadinho mais de vida normal”. Susana exemplifica, referindo que “já se vê pessoas da terra num ou outro restaurante, em algumas esplanadas”.
O surto de Reguengos de Monsaraz, detetado em 18 de junho, provocou 162 casos de infeção, a maior parte no lar da FMIVPS (80 utentes e 26 profissionais), mas também 56 pessoas da comunidade, tendo morrido, até finais de julho, 18 pessoas (16 utentes e uma funcionária do lar e um homem da comunidade).
O padre Manuel José Marques, de 60 anos e pároco local há quase 23, foi quem celebrou a maioria dos funerais, com novas regras ditadas pelo coronavírus SARS-CoV-2.
“Fazer um funeral é sempre duro. Para mim também, nunca vou de ânimo leve, mas chegar ali e ainda por cima não ver quase ninguém foi muito complicado”, lembra.
“Com tão pouca gente, dar um abraço à família era uma reação que me apetecia ter”, acrescenta. Como não o podia fazer, restava-lhe dizer aos familiares que gostava de abraçá-los. “E ali ficávamos, os poucos que ali estávamos, na emoção do não posso”, relata.
Houve dias de vários funerais: “Num deles, chegou a haver um de alguém não católico, um católico celebrado por mim e ainda me cruzei com um sacerdote ortodoxo que veio celebrar o de uma pessoa estrangeira”, indica, referindo-se à funcionária do lar, com 42 anos.
“Foi um embate muito grande para a comunidade”, admite o padre, responsável por dois centros sociais no concelho (S. Pedro do Corval e Campinho) e até diretor do jornal local Palavra.
No centro social de Campinho houve, “logo no início, em março, duas funcionárias infetadas”, num surto que atingiu oito pessoas na aldeia, mas a doença ficou por aí.
Por isso, quando a covid-19 ‘invadiu’ o lar da FMIVPS, numa altura em que o Alentejo quase não tinha casos ou mortes, foi “uma surpresa”.
A comunidade só começou a serenar quando viu que a situação estava confinada, mas até lá não se avistava o fim: “Eu, que nem sou de me assustar, nem de fazer grandes filmes, cheguei a pensar que iria ser muito pior”, relata Manuel Marques.
A par dos efeitos diretos da pandemia da covid-19, o padre diz ter visto surgir outros problemas na cidade: “a pandemia do medo e, depois, a pandemia económica”.
“Reguengos estava às moscas. Cheguei a desafiar as pessoas para não terem medo, para irem beber um café, não tínhamos era de andar todos juntos, mas que podiam sair e viver”, assinala.
Deparou-se com “pessoas a chorar porque não tinham negócio, estava tudo parado, ninguém lá ia”.
E era esse o panorama: “Havia as pessoas doentes, as que estavam com medo e as que tinham o problema dos negócios parados e não sabiam o que fazer à vida. E quem tem contas para pagar perde o medo do vírus, é obrigado a isso”.
Dona uma loja de material elétrico, Liliana Barrambana, de 37 anos, fechou ao público, mas manteve os fornecimentos para a construção civil.
“Os fornecedores é que não queriam vir, diziam mesmo ‘eu nem passo ao pé de Reguengos’. Estou a falar de fornecedores de tudo, chegou a este ponto”, recorda.
Em ‘dois dedos’ de conversa na pequena pastelaria da mãe, Francisca, mesmo ao lado da Praça da Liberdade, em obras, sem trânsito, mas onde a Lusa observou diversos moradores a circularem, quase todos com máscara na cara, Liliana assegura que as pessoas já saem à rua, com cuidados redobrados.
“É ‘coração à larga’ porque se tem de continuar a trabalhar, a viver, a fazer as coisas. Senão, as pessoas não morrem do vírus, morrem à fome”, afiança.
Sobre a polémica em torno do surto, que levou à abertura de um inquérito judicial e a uma auditoria da Ordem dos Médicos (esta concluiu que o lar não cumpria as orientações da Direção-Geral da Saúde), ninguém se alonga em comentários, mas todos querem respostas.
“Não conheço o lar a fundo, não sei o que lá se passou. Acho que se deve apurar a verdade dos factos, mas não sei se há razões para isso. Eu próprio me questiono sobre como é que isto aconteceu aqui, de repente e tão rápido”, afirma o pároco.
Rita Ranhola / Lusa