Telmo Pinão. O ciclista que subiu a Serra da Estrela só com uma perna

Imagine subir durante 30 quilómetros uma altitude de 1993 metros. Cansa? Agora retire uma perna. Telmo Pinão, que vai correr duas provas nos Paralímpicos Rio de Janeiro, fez com que uma equação aparentemente impossível só terminasse quando pôs o pé na Torre.

Ele diz que não é de se gabar. Apesar de achar que tudo o que já fez depois da amputação não é pouco. Mas quando chegou ao topo da Torre, na Serra da Estrela, explodiu de alegria. Venceu-se a ele próprio. Teve de fazer um vídeo para eternizar o momento. Alcançou um feito que, garante, ninguém conseguiu antes: subir ao ponto mais alto de Portugal Continental com apenas uma perna.

Foi há dois meses, mas Telmo Pinão quando fala do momento parece reviver cada pedalada. “Fiz esse vídeo e foi viral [cerca de cinco mil visualizações] para motivar outras pessoas e criar um desafio. Já tinha subido à Serra da Estrela várias vezes mas sempre com prótese. Nunca só com uma perna”, valoriza.

“Sai da Covilhã, fiz 30 quilómetros até ao topo da Torre, sempre em sofrimento. Foi extraordinário. Fiquei impressionado comigo, não estava a contar subir toda a Serra da Estrela, nem com as performances com que o fiz. A 12 km/h em algumas zonas e 8/9 km/h noutras. Ia com potências de 300 watts – um atleta normal faz 400 watts”, explica.

Telmo tem vivido dentro de uma tirada de montanha com muitas subidas e descidas. Em 2002, aos 22 anos, a perda de parte da perna esquerda, numa prova de moto4, mudou tudo. Para muitos podia ter sido um fim, para este homem de Montemor-o-Velho, Coimbra, foi um início.

Adorava, adora e adorará o desporto. Por isso, primeiro virou-se para o karaté. Ajudava-o a recuperar, a reactivar zonas musculares adormecidas; fascinava-se com a disciplina a que obrigava. Competia com “os normais”. Primeiro tudo corria bem. Mas a cada movimento que ele melhorava, piorava a forma como os outros combatiam com ele.

“Os adversários já não me estavam a respeitar muito, se calhar não teriam de o fazer”, enfatiza.

Foi ao tapete mas não ao fundo

Não foi o fim do mundo, até porque já naquela época começava a nascer o “bichinho olímpico” e o karaté não era modalidade eleita.

“Já sabia que queria ir aos paralímpicos mesmo antes de começar no ciclismo”, recorda Telmo Pinão, agora com 36 anos.

Uns anos antes, tinha comprado uma bicicleta. Primeiro, olhou para ela a imaginar como se meteria no selim sem cair. Usava a prótese, sem nenhuma adaptação, e foi necessário dar-lhe mais amplitude para fazer a pedalada.

Passou dos 10 quilómetros de treino iniciais para os 50 a 60 quilómetros quase todos os dias sempre que se fazia à estrada nas planícies da Bairrada. À primeira prova oficial ficou logo em terceiro lugar e só “porque se enganou numa rotunda”. Tinha descoberto um filão. Os Paralímpicos já não eram uma miragem.

Mas mais uma vez teve uma descida abrupta “na montanha”. Uma bactéria que estaria alojada na perna desde a amputação atacou. Os médicos deram-lhe a sentença: ou deixava a prótese ou teria de cortar mais um pedaço da perna.

Foi uma fase crítica. “Sofri muito emocionalmente e fisicamente”, lembra. E teve de mudar. Outra vez. Mas não desistiu. “Consegui mudar de classe C4 (amputados transtibiais com prótese) para C2 (amputados transfemurais).”

No início, o equilíbrio foi periclitante. “Foi complicado. A nível de esforço não senti grande impacto, porque já fazia tudo com aquela perna. Mas a esquerda dava o equilíbrio”, relembra.

Saiu para a rua durante meses e meses “com medo de cair”. Mas não o suficiente para o afastar da subida de ravinas no BTT com que continuou a testar-se. Caiu e levantou-se sempre, até que uma nova adaptação que permite encaixar a perna esquerda e a mantém imóvel o reequilibrou na bicicleta.

A bactéria volta a atacar

Tudo bem, até que a mesma bactéria fez mais uma visita indesejada. Os médicos aconselharam-no a deixar o emprego como comercial de uma importadora de peças de automóvel. O joelho da perna amputada não estava a aguentar as viagens de cliente para cliente e os dois mil quilómetros de estrada. Despediu-se pela saúde e para se poder dedicar ao ciclismo mesmo antes da ida para o Brasil.

Passou de ciclista de fim de dia para o treino de alta competição e daí para o treino de alto rendimento. “Estou a treinar como o Nelson Oliveira [ciclismo] e o Fernando Pimenta [canoagem] fizeram. Faço treinos bidiários, alimentação controlada, acompanhamento médico e desportivo com treinadores de ‘top’”, enumera.

“Isso nota-se. Os testes físicos demonstram uma performance incrível”, gaba-se. Mas ainda não chega. Ao lado de Telmo estarão “extraterrestres”. Homens capazes de pedalar a 40 km/h. “Há atletas em Portugal que com as duas pernas não fazem essas médias”, aponta.

Ainda assim, e porque deu um pulo na forma física, deu um salto nas expectativas na prova em linha, já que no contra-relógio não tem hipóteses. “Há cinco meses diria sempre que ficaria acima do décimo lugar, mas na última Taça do Mundo andei com eles, homens que me davam 12/ 15 minutos. Desta vez cheguei com 3/ 4 minutos”, afirma.

“Isto foi há dois meses e eu já evoluí muito. Não lhe sei dizer. Vou tentar ir buscar um décimo, não sei?”, equaciona. Medalhas? Só num dia mau dos outros e num muito bom de Telmo.

Quando voltar, vai querer ajudar os outros. Os que têm deficiências e a quem não basta dizer “vem fazer desporto connosco”. “É preciso ir buscá-los, é preciso passar tempo com eles e verem que um igual consegue fazer”, identifica.

Perguntem-me o nome

Telmo quer que os outros estejam também mais preparados para lidar com o que ninguém lhe ensinou. Como é que se gere a interacção com as pessoas que chegam ao pé dele e não querem saber quem é, apenas olham para ele como um objecto de curiosidade.

“Como é que isso aconteceu?”. É a habitual primeira frase destes encontros. “No mínimo, perguntem-me o nome primeiro”, pede.

Um acontecimento traumático traz sempre um “antes” e um “depois”. E a avaliação de Telmo é que, após a perda de parte da perna, a vida não foi melhor, nem pior. Foi diferente. E há uma coisa bem diferente. “Antes do acidente era incapaz de deitar uma lágrima, os sentimentos alteraram-se.”

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