“Há uns anos, numa entrevista do guionista – Dalton Trumbo, ouvi-lo dizer que: “um homem vive perigosamente se não tiver algo que é seu. É necessário ser dono de algo para que possa ser considerado livre, nem que seja remotamente. O homem sem algo que não seja propriedade sua, não tem liberdade nenhuma. Numa sociedade perfeita e num mundo ideal a busca pela propriedade e consequentemente pela felicidade não seriam necessários. No entanto, na nossa sociedade tal não é possível”.
Ao olhar para a atual trincheira digital acerca da suposta imposição da instalação da aplicação Stayaway Covid só posso achar, no mínimo, irónico que esta seja realizada em redes sociais – como o Facebook. Será que quem se arma com um teclado e um ecrã já se deu ao trabalho, antes de aceitar, de ler os termos e as condições de uma qualquer rede social em que tenha uma conta? Se o fizesse, talvez concluísse que o Stayaway Covid é um passeio no parque.
Primeiro – todas as contas que temos em qualquer rede social são espaços que não são nossa propriedade. São contas alugados a numa esfera virtual que foi criada e desenvolvida num dos muitos edifícios de escritórios e servidores que existem em Silicon Valley.
Segundo – no fundo, “damos”, a troco do usufruto de uma pequena herdade digital que é manietada, uma versão digital das nossas vidas a uma multinacional que a venderá a outras empresas como se fosse moeda. Neste contexto, os impulsos da nossa individualidade são meros bens transacionáveis. E é sobre a sua apropriação que as empresas responsáveis pelas redes sociais erguem os seus impérios contemporâneos.
É através de Michel Foucault que se conclui que a institucionalização do poder e o seu exercício mudaram ao longo dos tempos. Hoje, este não é só exercido de cima para baixo – como nos tempos monárquicos, mas também nas relações que ocorrem no interior das sociedades e nos seus inúmeros mecanismos. Isto é, não ocorre só no domínio público, mas também no domínio privado. E é nestes contextos, como por exemplo, numa conta de uma rede social que se assiste com uma normalidade assustadora à presença de mecanismos e dispositivos de vigilância que nos acompanham em qualquer ação que fazemos.
Para além da CCTV, que nos acompanha no dia-a-dia no mundo físico. Numa rede social a ampliação deste elemento é extrapolada até ao limite. Nestes espaços assiste-se a uma discreta observação e controlo panótico. E nós aceitamos essa condição – de quase animais enjaulados – porque uma rede social é isso mesmo. Trata-se de um espaço organizado que nos vê e controla permanentemente. Porém, a sua discrição torna esta presença quase indetetável, normal e aceite…
E é aqui, neste reino quase orwelliano, em que a perceção suplanta a realidade. Onde uma mentira, ou uma realidade alternativa, adquire laivos de realidade passando a ser uma crença aceite por uma sociedade, que se está a discutir a legalidade da imposição de uma aplicação?! Pessoalmente, considero que discutir questões relacionadas com o direito à nossa individualidade, nestes espaços é no mínimo – irónico. Aliás, a passagem de alguns responsáveis de empresas ligadas às redes sociais pelo banco dos réus não é obra do acaso. O hiato entre o público e o privado é realmente muito estreito.
Será que esta proposta de António Costa relativa ao Stayaway Covid não era para medir a reação do público? Será que não se queria aferir os níveis de volatilidade com que a sociedade responderia? Já não seria a primeira vez que tal ocorre. Recordam-se das propostas de privatizar a RTP, as obras que seriam edificadas sobre zonas protegidas – (estuários do Tejo e mais recentemente o Choupal) …
Neste momento pautado por tanta indefinição, considero, entre outras coisas, que seria mais importante compreender quem realmente estará a ganhar com a massificação desta imposição desta aplicação, qual é a sua real utilidade e principalmente se a população portuguesa está preparada para partilhar dados desta sensibilidade à escala que o Stayaway Covid propõe…
Luís Miguel Pato
Profissional e docente em Ciências da Comunicação”