O Tribunal Europeu de Justiça anulou acordos de pesca entre os 27 e Marrocos, por contemplarem o Saara Ocidental. A TSF entrevista um diplomata sarauí, que já liderou o governo da nação em busca da autodeterminação.
Nascido em Dakhla, no Saara Ocidental, licenciado em Direito pela Universidade de Salamanca, foi um dos fundadores da Frente Polisário, o movimento de libertação nacional do Saara Ocidental e da República, em 1975. Presidiu ao governo entre 2002 e 2019, além de outros vários cargos elevados na estrutura política de um território que Marrocos ocupa parcialmente e que levou a uma missão das Nações Unidas, a MINURSO, que tem o objetivo de fazer as partes entenderem-se e levar a um referendo pela autodeterminação. O paralelo com a situação da ocupação indonésia é incontornável e a responsabilidade histórica de Espanha também. Abdelkader Taleb Omar, atual embaixador na Argélia, não poupa o governo espanhol e elogia o exemplo corajoso de Portugal. Entrevista na TSF, ao programa O Estado do Sítio, depois de ter sido orador no congresso The Future of Politics, organizado pela Advanced Leadership Foundation, em Cascais.
Qual é o significado político da decisão desta semana do Tribunal Europeu de Justiça que anula os acordos de pescas da União Europeia (UE) com Marrocos?
Isto tem um grande significado político. O Supremo Tribunal Europeu de Justiça anula esses acordos, que foram negociados com o Conselho Europeu e Marrocos, relativamente à pesca e produtos agrícolas. Tem uma dimensão enorme porque Marrocos e, inclusivamente os que assinaram esses acordos, queriam transmitir a mensagem de que Marrocos tem a administração e, portanto, têm o direito de assinar acordos com outros países. Os marroquinos interpretaram isso como uma aceitação da sua presença no Saara Ocidental. Outros também o interpretam assim.
Contudo, hoje, com esta sentença de anular esses acordos que foram assinados no Conselho Europeu com Marrocos, explicaram que Marrocos não tem soberania sobre o Saara. O Saara e Marrocos são dois territórios distintos e separados e, portanto, Marrocos não tem nenhum direito. Além do mais, o acordo não contou com a concordância do povo sarauí, que é uma regra alegada pelo Conselho Europeu de que isto ia ao encontro do benefício da população Sarauí, mas a regra é que tem de contar com o consentimento do povo Sarauí”.
Hoje, o tribunal reconheceu a Frente Polisário como o único representante do povo Sarauí e que pode defender os seus interesses nos tribunais. Como tal, Marrocos e o Conselho tentaram colocar em dúvida a representatividade da Polisário perante o povo Sarauí. Isso é algo muito importante porque também os marroquinos dizem que não, que a Polisário não é o único representante, então, é um elemento de grande valor.
Em segundo lugar, anulam-se os acordos porque incluem o território de Sarauí e Marrocos não tem nenhum direito, nenhuma soberania, para assinar acordos. E, portanto, isto vem depois da posição do Presidente Trump, em reconhecer a soberania de Marrocos sobre o Saara. Isto também é uma resposta indireta a Trump, no sentido de que o que ele pensou e fez é ilegal, vai ao arrepio das decisões dos tribunais e contra as resoluções das Nações Unidas. Marrocos contou muito com essa posição e tentou obrigar Espanha, Alemanha e a União Europeia a seguir os passos de Trump. Marrocos utilizou também a imigração como pressão, a imigração para entrar em Ceuta e Melilla para pressionar Espanha e toda a Europa: ´aqui estou e têm de reconhecer a soberania, caso contrário vou continuar a pressionar pela imigração’. Marrocos contava que isto fosse mudar as coisas. Agora, essa sentença, não só anulou os acordos, como também deixou cair toda essa esperança de que os demais países podem seguir a posição que tomou Donald Trump. Tem essa dimensão estratégica. Hoje é uma referência a nível internacional. Inclusivamente, antes da reunião agora em outubro sobre o Saara – há uma reunião anual, sobretudo quando o Secretário-Geral das Nações Unidas, senhor Gutterres, propôs Steffan de Mistura como enviado pessoal dele”.
O lugar estava vago há quase dois anos…
Mais de dois anos… e acaba de propô-lo, mas os marroquinos não queriam. Contudo, ultimamente, como baixou a pressão dos Estados Unidos, acabaram por aceitar. Todos são elementos importantes, que podem dar uma nova dinâmica e obrigar a Marrocos a terminar com a sua propaganda expansiva, de que isto lhes pertence e é Marrocos e nada mais que Marrocos. Com essa sentença do Tribunal Europeu e, ainda mais com a posição da União Africana, que reconhece a república Sarauí, eu creio que Marrocos está a conectar-se com uma nova realidade, depois de se ter inchado com o reconhecimento da soberania deles sobre o Saara ocidental.
Falou várias vezes de Donald Trump. Esse posicionamento do ex-presidente americano piorou bastante as expetativas de uma solução para a questão da autodeterminação do Saara Ocidental?
Efetivamente, ele criou falsas ilusões para Marrocos e também, com a sua posição, arruinou todo o processo pacífico que as Nações Unidas levavam a cabo no Saara. Sabes que a missão das Nações Unidas para o referendo do Saara está lá, a MINURSO, e, por isso, o Conselho de Segurança e o Secretário-Geral disseram que não podiam aceitar essa posição e que, a questão do Saara, está escrita como uma questão de descolonização. A questão está nas mãos das Nações Unidas e têm de encontrar uma solução dentro do marco das Nações Unidas.
Acredita que agora vai ser possível marcar uma data para o referendo?
O problema é que as portas estejam a ficar fechadas para Marrocos, em termos do que pretendem que é impor a legalização da sua ocupação no Saara. Com isto da sentença do tribunal europeu, com a mediação das Nações Unidas e com a proposta que vai chegar dentro de pouco dias, do enviado especial do secretário-geral da ONU, obriga Marrocos a rever a sua posição e a terminar com o comportamento de que o Saara é marroquino. Isto é uma resposta a nível europeu e junta-se à posição das Nações Unidas: ninguém reconhece a soberania de Marrocos sobre o Saara. O Saara continua a ser um território não autónomo. A questão do Saara assemelha-se à outra de Portugal. Muitos conhecem a questão de Timor-Leste. A questão do Saara é idêntica, surgiram no mesmo ano. Um grande país como a Indonésia anexou Timor-Leste pela força, Marrocos faz o mesmo.
Mas em Timor houve uma ocupação violenta durante 24 anos. Aconteceu o mesmo no Saara Ocidental?
Sim, sim. Houve uma guerra de 6 anos e foi assinado um acordo de paz, um plano de paz supervisionado pela ONU, mas foi abandonado. Porquê? A Espanha não fez o que fez Portugal. Portugal defendeu as suas colónias e obrigou a Indonésia a retirar-se e contou com o apoio da União Europeia e das Nações Unidas. A Espanha não. Ficou com uma posição neutral e deixou as coisas assim. E a França, como uma ex-potência colonial de quase todo o norte de África, apoio Marrocos perante as pressões internacionais e bloqueou o processo.
Ou seja, o Saara Ocidental e a Frente Polisário não têm grandes amigos na Europa do sul…
Francamente… os povos … há aqui muitos amigos, muitas associações de amigos do Saara Ocidental… em Portugal, em Espanha, em Itália, até em França. Muitos partidos, muitos deputados, mas os governos ficaram sob a influência de França por um lado, e a chantagem de Marrocos sobre Espanha com Ceuta e Melilla por outro; também a questão da pesca e, com isso, os governos ficaram parados. E esses países, neste caso, são referência para o resto da Europa.
A Espanha quer que o Conselho Europeu recorra da sentença judicial e apresente uma providência cautelar sobre a decisão do Tribunal Europeu de Justiça. Precisamente pelo impacto que vai ter no setor das pescas…
Nós o que dizemos a Espanha é que deve abster-se de bloquear o processo de autodeterminação do povo sarauí. Foram muitos anos e Espanha foi a causa, porque Espanha tem a responsabilidade de concluir a descolonização. E continua a ser, porque era a potência colonial. Saiu sem concluir esse processo e entregou o Saara a Marrocos e à Mauritânia como administração, não como soberania. Como diz o Secretário-Geral da ONU, Espanha continua a ser a potência administradora porque Marrocos não tem um mandato internacional, é uma força de ocupação. Espanha tem a responsabilidade histórica, por isso lhe dizemos: “basta” de causar o exílio e a separação das famílias sarauís, durante 45 anos e não deve defender mais os interesses marroquinos. Isto vai marcar a história de Espanha de como se pode maltratar e sacrificar um povo, perpetuando a condenação e exílio do povo sarauí. Espanha deve seguir o exemplo valioso e democrático de Portugal, a coragem de Portugal ao defender a sua antiga colónia de Timor-Leste, apesar da influência de uma potência como a Indonésia.
Deve seguir esse exemplo?
Sim, deve seguir o exemplo de Portugal. E aproveito a ocasião para saudar Portugal, o seu governo e o seu povo por ter defendido o direito à autodeterminação do povo de Timor Leste. É um grande exemplo para os povos: defender o mais fraco perante o mais forte. Se calhar Portugal até ganhava mais com a Indonésia do que com Timor-Leste, mas alinharam-se com o direito internacional e com um povo que tinha colonizado durante muito tempo. Merece a nossa saudação e é uma ocasião, hoje, para saudar o exemplo que deu e esperamos que Espanha siga esse bom exemplo.
Ainda que a anulação do acordo, tenha um impacto no setor das pescas. O senhor não receia que isso produza um impacto negativo na imagem da Frente Polisário e do Saara Ocidental junto da opinião pública espanhola?
Bom, na verdade são raros os setores que beneficiam desse acordo da União Europeia com Marrocos. E não são todos espanhóis, inclusive a Espanha pode ganhar com a Frente Polisário não somente no setor das pescas, há muitos outros setores que podem ganhar como ganhar quando estiveram presentes no Saara. Com Marrocos ganham muito pouco. Marrocos o que espera é anexar o Saara de forma total e se lhe deixarem fazer isso, vai mostrar os músculos, a Europa vai ver um Marrocos muito diferente. No dia seguinte, o Marrocos amigo, sensível, modesto, vai converter-se num Marrocos com poder. Os problemas que Espanha não resolver agora vão ter custos para as gerações futuras. Espanha não deve continuar a perder tempo, procurando amigos onde não os tem.
Como é a situação atualmente no Saara Ocidental? Sei que houve um recrudescimento do conflito no último ano, praticamente…
Sim, desde 13 de novembro que Marrocos, depois da posição de Trump, quis pressionar toda a gente, violou o cessar-fogo, e agora há bombardeamentos diários ás posições do exército marroquino, é agora uma guerra de desgaste, Mas pode vir a ter caraterísticas mais agudas.
Mas quem é que ajuda a Frente Polisário? A Argélia? É uma ´proxy war, uma guerra por procuração entre a Argélia e Marrocos?
Não, a Argélia não tem nada que ver. Nós somos membros fundadores da União Africana (UA) e um dos estatutos principais da UA é o respeito pelas fronteiras herdadas do colonialismo, porque se isso não se respeita toda a África vai mudar, não há mais estabilidade. Os estatutos da UA reconhecem também o direito à autodeterminação. A Argélia reconhece esse direito. Marrocos alega algo que é falso mas que se interpreta como se as suas fronteiras se estendessem até ao Rio Senegal. Noutro momento histórico, também reivindicaram a Mauritânia, também a parte ocidental da Argélia. O expansionismo marroquino não tem limites, não tem fronteiras físicas. A atual constituição de Marrocos não limita as fronteiras do país. Dizem: “as reais fronteiras” e interpretam isso como querem. E se os países partem desse conceito de fronteiras históricas, o império otomano poderia reivindicar muito, o império romano também, vocês aqui em Portugal idem. Hoje, as fronteiras estão reguladas pelo direito internacional que reconhece o direito das colónias à autodeterminação e independência. As organizações continentais reconhecem isto. Hoje em dia, anexar territórios pela força não é admissível.
Os movimentos de libertação são sempre considerados como tal por quem aspira à autodeterminação e independência, mas são também sempre considerados movimentos terroristas na ótica do estado. Marrocos entende que a Frente Polisário é um movimento terrorista…
Não, repare: há uma grande diferença entre os movimentos de libertação e as organizações terroristas. Os movimentos de libertação estão reconhecidos pelas Nações Unidas. O artigo 15/14 que defende a descolonização pede aos estados que apoiem os movimentos de libertação a recuperar os seus direitos e estão assim classificados pelas Nações Unidas. Hoje, o Saara Ocidental é um dos dezassete países que continuam sem ser descolonizados. A ONU considera isso um crime e cada povo tem o direito de lutar como autodefesa para recuperar os seus direitos, enquanto que as organizações terroristas não têm conceitos claros de construção do estado senão criar o terror, causar sofrimento aos civis e lutar sem causas a não ser provocar danos e causar desestabilização. Às vezes os estados podem financiar outros para provocar danos a outros e não se movem dentro do quadro legal do direito internacional. É a grande diferença entre terroristas e movimentos de libertação.
Como é a situação económica e social hoje no Saara ocidental?
Há uma parte ocupada e quem beneficia dos recursos naturais é o exército marroquino e os dispositivos policiais que beneficiam da pesca e do fosfato, enfim, de toda a riqueza que ali existe. E há uma outra parte depende muito da ajuda internacional, e de organismos como o ACNUR, o Programa Alimentar Mundial, a UNICEF, e de algumas ONGs amigas, sobretudo na Europa. Resimindo, as condições não são nada fáceis, mas o povo resiste e organiza-se com os poucos recursos com que conta sobre o terreno. E assim resistem e continuam a luta.
Ricardo Alexandre com Maria Trindade (estagiária) / TSF
Imagem: R7