Há dois anos a trabalhar na formação do futebol chinês, Ricardo Lavrador veio de férias para Portugal, antes da chegada da crise do coronavírus e, desde então, está a espera de luz verde para voltar a fazer o que mais gosta: ensinar aos miúdos a tomar o gosto pelo futebol, como um dia ele próprio tomou!
Ricardo é, como toda a família, aliás, um sportinguista de quatro costados, mas a sua visão do futebol é, devido à sua formação académica de treinador, diferente da do comum mortal. É claro que ele sofre pelos anos todos do seu clube na fila para ser campeão mas, do que ele gosta mesmo de falar, é da formação! Trabalhando com crianças de 12 e 13 anos na Meizhou Sports School na Província de Guangdong (distante 6,30 horas de Pequim), Ricardo é o adjunto de Marco Santos e um dos três elementos lusos (o outro é o treinador de guarda redes, Bruno Roda) que aventuraram-se em tão longínquas terras. Desde então, Ricardo garante ter presenciado “uma evolução daqueles jovens que superou, em muito, as nossas expectativas iniciais… é fantástico ver um salto qualitativo tão grande num espaço temporal relativamente curto”.
Garantindo que “não foi somente a parte financeira que influenciou” na sua ida para a China, “o preço a pagar por estar longe da família é muito alto”, este jovem treinador mirense afirma peremptoriamente que, mesmo com a dor de separar-se das filhas pequenas, da esposa e de todos os familiares, “ao entrar o avião” tudo muda. “Meu foco muda para o que terei de fazer no meu trabalho… esta é a forma que encontrei de contornar a tristeza do momento da despedida!”.
Voltar para a China… viver na China!
Estando em Portugal desde Dezembro, quando veio de férias, Ricardo Lavrador garante que, “caso não haja algo que fuja ao nosso controlo” estará de volta ao seu trabalho em Meizhou, quando as condições estiverem novamente normalizadas. Tendo sido informado pelos responsáveis da Escola de Futebol de que deveria permanecer em Portugal até novas orientações, admite que “já estava a espera” dada a gravidade da situação. Acreditando que “a situação será resolvida para bem de todos” Ricardo dá uma ideia da dimensão do problema: “por conta do ano novo chinês eram esperadas 3 mil milhões de viagens… através destes números podemos depreender o que está a se passar ainda por esta altura”.
Mas, o grave caso de uma eventual tentativa das autoridades chinesas em ocultar a existência do coronavírus num primeiro momento, foi o mote para conhecermos uma outra realidade naquele gigantesco país: será que um estrangeiro ali residente, sente algum tipo de opressão no dia a dia? Eis a resposta de quem vive no país: “Sentimos “algo”, sim, mas não é um “algo” opressivo. Evita-se falar sobre muitas coisas como, por exemplo, política interna. Parece que batemos contra uma parede se tocarmos em assuntos como este, pois os chineses procuram, rapidamente, desviar a conversa, não querem se expor…” acrescentando, porém, uma característica daquele povo, que detecta em todos os momentos “os chineses consideram muito importante a imagem, procuram sempre sair honradamente das situações em que estão envolvidos e gosto muito deste modo de estar deles!” admite.
Assumidamente apaixonado pela cultura milenar, Ricardo Lavrador só tem pena de não ter tempo para conhecer muito mais do que já conhece, uma vez que as distâncias são enormíssimas e o tempo de descanso é de dois dias. Desta forma, acaba por ocupar os seus tempos livres, muitas vezes, em análises daquilo que tem sido feito e na procura de novidades que possam ser absorvidas nos métodos de treinos que introduzem no dia a dia.
Sobre a relação profissional existente com os dirigentes locais, que possuem “uma mentalidade bastante diferente da ocidental”, Ricardo admite terem acontecido momentos bastante difíceis no princípio: “Quando chegamos havia algum cepticismo por parte dos dirigentes mas, pouco a pouco, eles foram percebendo que estávamos lá para trabalhar a sério e, posso dizer com certeza absoluta que hoje temos sinal verde para tudo”. Porém, esse tudo teve de ser arduamente conquistado, “uma vez que visávamos fazer um trabalho de base que gerasse frutos a médio prazo, foi necessário mostrar-lhes que os resultados não podem aparecer do nada e devem ser fruto de um trabalho metodológico que incuta uma verdadeira cultura ganhadora… na verdade, para eles o futebol é um negócio como outro qualquer e, quando deixar de sê-lo eles, certamente, desistirão!”.
Daí a necessidade inicial de “vincarmos a nossa posição, mas também, mostrando-lhes resultados” que acabou por gerar uma relação “saudável, uma vez que eles acabaram por dar-nos razão, dando-nos condições ideais de trabalho de campo e nós, em contrapartida, mostramos respeito pela forma de sentir o desporto, da parte deles… assim sendo, conseguimos encontrar e manter até hoje, a balança equilibrada na hora em que são tomadas decisões importantes”.
Objetivos a serem conquistados brevemente
“Evolução ainda maior dos jogadores, um maior recrutamento , melhores classificações e, provavelmente, a participação nos campeonatos nacionais” serão as bases da época 2020/2021 que, espera Ricardo, possa ter início a breve trecho. Sendo certo que tudo está pendente da evolução da situação atual, Ricardo Lavrador afirma total disponibilidade para continuar no projeto em que está inserido. “Não conto retornar para Portugal nos próximos 5 anos… a não ser que haja uma verdadeira oportunidade, daquelas que não podemos recusar”, diz este profundo conhecedor da realidade futebolística do seu país. É olhando para ela que ele não vislumbra um retorno a curto prazo pois, antes, quer ampliar os seus horizontes pelo oriente ou mesmo pela Europa fora, onde existem competições tentadoras que lhe preenchem o coração apaixonado pelo desporto.
Na verdade, Ricardo Lavrador é um dos muitíssimos casos de bons profissionais que tiveram de emigrar em busca do sonho de viver daquilo que sempre almejaram. Com maiores ou menores dificuldades, ele vai levando a água ao moinho, que é como quem diz, vai fazendo o que mais gosta, formando atletas e futuros cidadãos, sempre com as bases que recebeu, vindas do berço.
Este mirense encontrou na distante China, um campo fértil onde vai cultivando ideias de treino e vai, também, colhendo os frutos de tamanha ousadia. Não são todos os que se predispõem a deixar para trás a saudade em nome do sonho de uma vida. Mas, certamente, os que o fazem com audácia e de forma destemida, acabam – de alguma forma – por encontrar a felicidade, não no fim do arco-íris, mas no trajeto que percorre contra todos os medos e todas as vertigens que estes podem causar…