“Numa altura em que os holofotes se encontram direcionados para os profissionais de Serviço Social, através do mediatismo gerado em torno da polémica morte de uma criança de 3 anos de idade, senti a necessidade, enquanto Assistente Social, de clarificar algumas questões inerentes à prática da minha/nossa profissão.
Todos sabemos que perante situações de injustiça, o ser humano sente uma necessidade intrínseca de encontrar um bode expiatório, um responsável, um alibi, como forma de apaziguar nele próprio, a dor que sente pelo sofrimento alheio, mas também de justificar, de amenizar o seu próprio sentimento de culpa.
Neste caso em concreto, dado o choque provocado na sociedade e o inerente mediatismo criado à sua volta, gostaria, apesar de tudo, lançar um olhar crítico, sem outro fito que não seja o de compreender onde começa e onde acaba a responsabilidade dos Técnicos de Serviço Social.
Parece-me, desde logo, bastante redutor, e até injusto, imputar a responsabilidade exclusivamente a uma classe profissional, sem se conhecer todas as variáveis e classes profissionais envolvidas no processo.
É certo que uma má decisão, mesmo que inconsciente, pode ter consequências altamente nefastas e por vezes até irreversíveis, sobretudo em profissões cuja intervenção passa pela defesa da vida e da dignidade humanas. Tal pode acontecer no Serviço Social, mas pode acontecer igualmente num tribunal ou num hospital, assim como nas mais variadas profissões que interagem com as pessoas. No entanto, considero, à priori, que um bom profissional, independentemente da sua área, deve ter conhecimentos suficientes para poder utilizar boas práticas e deve saber também onde começa e acaba a sua intervenção, sobretudo em matérias tão sensíveis como a das crianças em perigo, como era o caso em apreço.
Nesta sociedade global onde os problemas sociais se avolumam, abalando severamente a vida das famílias, o Serviço Social torna-se cada vez mais imprescindível para fazer a ponte entre as políticas do estado e a sociedade. O problema é que o estado que lança essas políticas através de legislação e protocolos de atuação, enfatiza a técnica quase como um fim em si, em detrimento daqueles a quem supostamente essas políticas se dirigem.
E, é esta questão que se me afigura como fulcral para a compreensão do papel dos Assistentes Sociais na nossa sociedade atual, com desafios cada vez mais constantes e agudizados por climas de tensão social, cada vez mais graves, dos quais destacamos obviamente a exclusão social, a violência doméstica, os maus tratos a crianças e idosos, entre tantos outros.
Neste capítulo importa lembrar que o desenvolvimento da profissão de Serviço Social foi em muito influenciado por medidas políticas que foram introduzidas entre os anos de 1990 a 2006, nomeadamente a criação da Lei de Bases da Saúde em 1990 (Decreto Lei nº 48, de 24 de agosto) e a criação do rendimento mínimo garantido (Lei nº 19-A, de 1996, publicada em 29 de junho) medida emblemática defendida pelo então primeiro-ministro socialista António Guterres. Desde logo, esta medida de integração social, atualmente denominada por Rendimento Social de Inserção (RSI), embora controversa, e até bastante contestada nos dias de hoje, por alguns setores da sociedade, permitiu, apesar de tudo, trazer alguma justiça social a uma camada da população excluída socialmente e sem qualquer tipo de rendimento. Podemos destacar ainda, o surgimento de outras medidas, nomeadamente a Lei de Crianças e Jovens em Perigo, de 1999, a criação da Rede Social em 2000, bem como as respostas integradas de saúde que culminaram com a criação da rede de cuidados continuados em 2003, reconfigurada em 2006 como rede nacional de cuidados continuados integrados.
Foi neste quadro legal que os Técnicos de Serviço Social se assumiram como os principais atores destas medidas, dando assim uma visibilidade à profissão que integram quer na administração central (ministérios e institutos públicos) e local (câmaras municipais e juntas de freguesia), quer em instituições de solidariedade social.
Mas, será que num país como o nosso, com um Estado que se assume como Social, estas e outras medidas legislativas serão bastantes o suficiente ou suficientemente eficazes para colmatar as necessidades prementes das muitas famílias com que trabalhamos?
Não me parece.
Na verdade, ao longo do exercício das minhas funções (já lá vão sensivelmente 15 anos), em áreas distintas como a 3ª idade, a ação social, a violência doméstica e a promoção e proteção de crianças e jovens, tantas e tantas vezes senti, como certamente outros colegas sentiram, que todo o enquadramento legal que anteriormente referi, não se tem mostrado capaz de assegurar os fins a que se propõe. Cada vez que abordamos um caso, torna-se claro, na maior parte das vezes, uma clara distopia entre a teoria e a prática, entre a Lei e o Serviço Social. No terreno constatamos facilmente que este emaranhado de leis se mostra incoerente e ineficaz para proteger as pessoas em risco, gerando assim um sentimento de incapacidade e de impotência, nos profissionais de Serviço Social.
Somos interlocutores por um lado e intérpretes por outro, de um conjunto de medidas legislativas, às quais procuramos dar sempre a melhor resposta, facilitando os processos e criando estratégias alternativas, que esbarram muitas vezes no ponto e vírgula da lei. O que manifestamente muito me preocupa, pois em casos como o desta criança, serão sempre postas a nu estas discrepâncias, entre o que é possível ao Técnico de Serviço Social fazer no terreno para ajudar, e aquilo que se pretende utopicamente como resultado final.
Importa ainda referir que muitas vezes a descoordenação dos vários serviços intervenientes, a falta de apoio e de respostas atempadas, impede-nos de dar o tão desejado auxílio, a quem dele precisa. Daí a importância de olhar e refletir sobre estas questões e desconstruir esta imagem estereotipada dos Assistentes Sociais.
Os holofotes não se vão virar nunca para o resultado final de milhares de situações de pobreza, de maus tratos e de exclusão social levados a cabo com êxito por excelentes profissionais de Serviço Social, que ajudaram famílias a reerguer-se, a encontrar um caminho de inclusão social, da dignidade humana, de uma vida familiar normalizada.
Mas vão seguramente virar-se e encontrar uma falha, não na lei, porque é dura, não na maldade humana, que existe e é impossível de combater, mas apenas no Técnico de Serviço Social que acompanhou o caso.
Cabe-nos a nós combater esta visão redutora e injusta, e lutar para que a legislação complete e apoie a prática social, em vez de ser um entrave à resolução dos problemas que a classe enfrenta.
Daí a urgência da criação da Ordem dos Assistentes Sociais, no sentido de dignificar e defender tão nobre profissão.
TEXTO: Dr.ª Joanna Balugas
• Licenciada em Serviço Social
• Pós-Graduada em Mediação Familiar
• Pós-Graduada em Mediação de Conflitos
(Reconhecida pelo Ministério da Justiça)
•Curso Técnico de Apoio à Vítima (TAV) definido pela CIG
(Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género)