OPINIÃO QUE CONTA: “Vivemos em tempos estranhos” (Luís Miguel Pato)

“O GROTESCO COMO ENTRETENIMENTO

“para que uma mensagem tenha impacto, às vezes é preciso cometer atos de violência”

“A Sociedade Industrial e o seu futuro” (Kaczynski, T. Aka – Unabomber)

Começo por pedir as minhas desculpas pela escolha desta citação, mas ao olhar para a ecologia mediática que nos envolve, não consegui encontrar melhores palavras para a descrever. A verdade é que pode parecer ficção, mas hoje ao olhar para o jornalismo que nos envolve é quase impossível estabelecer os limites entre o que é da esfera privada e o que é de interesse público. Em muitos casos parece que já não interessa ao jornalismo que é praticado atualmente. É tudo entretenimento; ou – infotainment (mistura entre informação e entretenimento). A noticiabilidade do assunto já não é o mais importa. Parece que os critérios editoriais atuais se norteiam através da ampliação constante de atos horrendos. Pois, parece que só assim se conseguem manter as audiências. É quase o reconhecimento de que vivemos um país de: “faca e alguidar”! Será que um assassino em série – como o Unabomber tinha razão?

Vivemos em tempos estranhos. Pois nunca, como hoje, estivemos tão bem equipados – no que ao acesso à comunicação concerne – mas, simultaneamente, também nunca se comunicou tão mal e de uma forma que visa descaradamente enviesar a opinião pública por parte de quem tem a responsabilidade informar.  Tal pode ser visto numa percentagem considerável do que se chama hoje – “jornalismo”. Infelizmente, é uma prática cada vez mais assente num sensacionalismo desenfreado que está erguido sobre constantes atropelos éticos e deontológicos. Veja-se, por exemplo, o tratamento noticioso que foi dado ao caso de José Sócrates – durante um ano, um título jornalístico deste país – que por acaso é líder de audiências – fez títulos com este caso. Quem não se recorda dos diretos em que só se via uma janela de onde estava detido… Ou a espera montada à sua porta em que se chegou a fazer um direto com um colaborador de uma pizzaria que lhe ia entregar uma pizza!

Com isto, não estou a dizer que está inocente, mas há muito tempo que já está condenado na praça pública, embora ainda não tenha sido julgado… Por enquanto, é uma espécie de Távora, embora virtual… Mas caramba, qual é mal. Quando se vive num país onde o representante máximo da nossa democracia – o presidente da república – telefona a uma apresentadora de programas de entretenimento da manhã a dar-lhe os parabéns e vai tomar uma vacina contra a gripe em tronco nu… Tudo isto parece normal…

Quo Vadis Portugal?

Ao retomar o cerne do texto – o jornalismo, é importante compreender a problemática que se está a tratar – o sensacionalismo. Trata-se de uma prática que se divide em três tipos – o linguístico, temático e o gráfico (Dines, A., 1971). A primeira modalidade está ligada à composição do texto. Normalmente reflete-se através de um grande recurso à adjetivação e descrições vivas. A segunda, está ligada ao interesse comercial que se reflete na escolha dos temas que são tratados e reflete-se sempre em assuntos que decerto assegurarão uma maior audiência. Por fim, o gráfico – é uma realidade que está presente no uso da constante repetição da mesma informação, títulos muito grandes, poucas palavras e uma escolha de cores que têm um grande índice de contraste.  

Como a comunicação – na sua essência – é uma realidade polissémica que se sustenta em correspondências sinestésicas por parte das audiências, pode ver-se que a maior parte do jornalismo que invade a nossa casa se baseia numa prática de quase voyeurismo sensacionalista. Trata-se de um resquício dos tabloides, do século XX, e do “jornalismo amarelo” que os proprietários de jornais – Joseph Pulitzer (“New York World”) e William Randolph Hearst (“New York Journal”) praticaram no final do século XIX numa luta de audiências entre as suas publicações. Em Portugal, tivemos e temos alguns exemplos deste de imprensa, como o – “Tal & Qual”, “Crime” entre outros…

Porém, eu acho que a situação atual está mais ligada à dominância que os “reality shows” têm na nossa dieta mediática. Trata-se de um consumo ritualista que visa entreter, fazer companhia e que apela à nossa curiosidade, mesmo a mais mórbida. É, no fundo, uma forma de entrar na casa dos outros sem sermos invasivos – descrição de Eduardo Cintra Torres, com a qual concordo. Porém, a informação, verdadeiramente isenta, que tem como missão essencial – formar, educar e promover o conhecimento não se coaduna com a obtenção deste tipo de gratificações.

O problema é que não são só os projetos de natureza privada, como os canais monotemáticos de TV, que já assumiram esta forma de abordagem. Hoje, pode ver-se que até, às vezes, os serviços públicos de média também já assumiram este tipo de abordagem. Porquê? Simples – porque é mais fácil produzir este tipo de conteúdos. Não é ao acaso que os projetos de jornalismo de investigação em Portugal são uma raridade…. Convém recordar que vivemos num país em que a SIC – que até há poucos anos, era um baluarte da arte de bem fazer informação em Portugal – noticiou a morte de Pedro Camacho com imagens do irmão Paulo…

Pode dizer-se que se vivem momentos assustadores porque o bom jornalismo – aquele que dissemina fatos, amplia conhecimento e promove uma vigilância dos poderes dominantes foi trocada por audiências, clickbait e números para apresentar às empresas e agências de comunicação. E a Entidade Reguladora da Comunicação (ERC) onde está? Encontra-se num estado de hibernação há já bastantes anos. Aliás, e não está só. Pois, para além dos programas – “Provedor do Telespetador” e o “Provedor do Ouvinte” – que apenas abordam o serviço público de média – pouco ou nada se tem defendido o público perante o poder que os media têm. A única ação que me recordo está relacionada com a recente suspensão que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) aplicou ao jornalista Filipe Santos Costa por incompatibilidade devido à realização de um “podcast” para o Partido Socialista. De resto, tem sido um deserto de ações…

Em suma, os motivos que me levaram a levar a escrever este desabafo, estão relacionados com a programação, do passado dia 06 de dezembro, da responsabilidade de um canal monotemático – que por acaso é líder de audiências. Durante esse dia noticiou a morte de uma jovem profissional da música em contínuo. Transmitiu, também de forma incessante, videoclipes, vídeos de redes sociais, imagens da falecida com a sua família e amigos etc. Ah, e não posso esquecer os “convidados”, alguns dos quais colaboradores do canal em questão, que se apresentavam como sendo amigos da família e da falecida que ao dar o seu testemunho tinham o cuidado de dizer que tinham visto a notícia no canal em causa em “primeira mão”.

Para mim, o fato de se tratar de uma figura pública não é desculpa, nem sequer justificação para este tipo de abordagem! De se ter montado este circo mediático! Mas o pior veio no dia a seguir. Pois, esse mesmo canal, noticiou com um “orgulho” inqualificável que teve 4 milhões e 443 mil espectadores no dia anterior – o que representa uma audiência média por minuto de 226,000 pessoas! Disto concluo tristemente que – quase metade da população nacional esteve a assistir a uma programação sustentada sobre o sofrimento alheio e concluo que infelizmente isto demonstra muito do nosso país…

Para finalizar, recordo aos “jornalistas” deste meio e de outros que achem normal aplicar este tipo de abordagem que no “Novo Código Deontológico” – do “Sindicato dos Jornalistas” diz que o jornalista deve:

  1. recusar as práticas jornalísticas que violentem a sua consciência.
  2. proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.
  3. respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende. O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas.

Portanto, não; isto não é nada normal… Dizer-se que é antiético é parco…

Luís Miguel Pato – Docente e Profissional em Comunicação”