21.1.2024 –
“O mundo encontra-se hoje numa situação de grande reboliço, enorme incerteza, fruto da violência que infelizmente grassa neste planeta. As guerras que hoje ocupam os noticiários, que preenchem as páginas dos jornais e as ondas das rádios, são o reflexo desta agressividade que emana das questiúnculas e controvérsias entre os povos, entre as pessoas.
Viver em sociedade é, em si mesmo, aceitar que o outro tem o seu espaço, a sua opinião, a sua liberdade. A societas é a aliança, a parceria entre os concidadãos que juntos assumem respeitarse, cumprir a Lei e o Estado de Direito. Mas esse contrato social estabelecido entre as pessoas implica respeitar as nossas diferenças, as diferentes crenças e ser pessoa com dignidade humana. E esta dignidade está criticamente violentada, desde logo porque o eu tem mais valor que o nós, os meus interesses superam os do outro, os meus problemas são sempre maiores que os do outro, e quando não prevalecer o meu ego e umbigo, os meus direitos estão a ser vilipendiados, e, por conseguinte, passa a ser legítimo agredir, desrespeitar, ameaçar ou coagir quem se atravessa nesse caminho.
Os profissionais de saúde têm sido vítimas fáceis de cidadãos que, genericamente, se julgam com mais direitos que deveres, que as suas necessidades ou de pessoas próximas devem imperar sobre outros mais carenciados, que as disfunções do sistema, e em particular do SNS, são da responsabilidade exclusiva desses profissionais. Os profissionais de saúde são, antes de tudo, pessoas, concidadãos de todos esses, também com direitos e deveres, com dignidade e merecedores de respeito no exercício de funções de interesse público, a realizarem a materialização das suas profissões, que escolheram e que tanta falta fazem ao País.
Em 2022, mais de 1600 casos de violência contra profissionais de saúde foram reportados à Direção Geral da Saúde (DGS), mais precisamente 1632, na plataforma Notifica, e certamente mais existiram, embora não tenham sido reportados. Tais denúncias significam um aumento superior a 40% em relação a 2021, com um total de 961 casos, que, por sua vez, foi superior a 2020, com 825 reportes. Neste ano de 2022 os médicos, os enfermeiros e os assistentes técnicos foram os mais visados, por essa ordem, mas com valores muito próximos entre eles, rondando os 30%. A violência psicológica liderou em quase 70%, seguindo-se o assédio e a violência física, com mais de 10%. Releva nestes dados que quase 400 profissionais careceram de encaminhamento e apoio psicológico, e menos de 100 dos casos tiveram exposição criminal.
No ano de 2023 existiu, face ao ano anterior, um total de 1036 casos reportados, apenas registados no primeiro semestre. Logo, pode-se presumir que, mesmo que não exista similar volume de ocorrências, ainda assim, é expectável que ultrapasse os números globais de 2022. E aqui, o grupo profissional mais atingido foi o dos enfermeiros, com 35% dos casos, 28% os médicos e 23% os assistentes técnicos. O coordenador do Gabinete de Segurança para a
Prevenção e o Combate à Violência contra os profissionais de saúde, Sérgio Barata, justifica estes números de violência contra enfermeiros com o facto de serem o maior grupo profissional em termos absolutos e “… por serem um dos primeiros rostos no atendimento dos doentes…”.
Mais uma vez a violência psicológica representa a maioria das situações com 67%, seguindo-se a violência física com 14%, mas recorda-se, refletindo apenas metade do ano. Entre outros e diversos números apresentados pela DGS, foram contabilizados 4040 dias de ausência ao trabalho como reflexo desta violência. Importa aqui perceber se essa violência, gratuita e sem justificação, obteve ganhos para quem a promoveu, se com isso obtiveram cuidados de saúde de qualidade e se dessa forma acautelaram os seus interesses e direitos. No concreto, o que daí resultou para estes agressores? A resposta é fácil, nada. Apenas se permitiram a desrespeitar alguém que era um trabalhador, pago por todos para exercer o que melhor sabe fazer, que foi para isso preparado. Um investimento do Estado, que somos nós todos, e que se não faz ou fez mais é porque não pode ou não tem as melhores condições para fazer mais.
Seria bom que todos, enquanto Estado, que vivemos em sociedade, nos inquietássemos com isto, pois importa a todos. Seria bom se soubéssemos fazer um exercício de introspecção, pormo-nos no lugar destes profissionais, indagando-nos: se fosse a nós que acontece-se tudo isto, como reagiríamos? O que sentiríamos? Falta em grande medida colocarmo-nos no lugar do outro. Esquecemo-nos que existe um outro que é família de alguém, que é alguém, que merece respeito no seu local de trabalho, tal como cada um quereria ter no seu.
Nesta medida, a Ordem dos Enfermeiros considera fundamental que a violência contra profissionais de saúde deva passar a ser catalogada como crime público, pois o regime atual não protege a vítima. Reforça-se o facto de, atualmente, carecer de queixa formal pela vítima para que exista procedimento criminal, quando deveria ser automático.
Neste mundo em conflito, violento e em que o limiar da agressividade é uma centelha que depende da vontade de alguém no momento, não chega apenas centrar-se no civismo e educação de cada um, acrescido a respeitar a liberdade e dignidade do outro. Urge criminalizar mais assertivamente tais condutas e o desrespeito que ninguém merece, pois
isto já não é um fenómeno, é a dura realidade dos nossos dias.”
Valter Amorim
Presidente do Conselho Diretivo da Secção Regional Centro da Ordem dos Enfermeiros