OPINIÃO QUE CONTA: “A cultura do medo e a imposição de um discurso do pânico” (Luís Miguel Pato)

Embora estejamos em período pós-Páscoa, se há algo que nos assalta constantemente é a imposição de uma cultura do medo que se apresenta como algo incessante e indissociável do que se define como – “o novo normal”. E está por todo o lado…

Não quero com isto ser um negacionista como as Sandras Celas desta vida. No entanto, apenas pretendo impor alguma temperança num discurso de medo e de aclamação de um pânico abafado que se sustenta sempre na existência, muitas vezes quase em surdina, de um medo constante. É como se vivêssemos num estado contínuo de ansiedade. Estamos, por exemplo, a desconfinar e já se fala, quase em ato contínuo, de uma nova vaga… Não vá o público ficar com a
ideia que o contexto pandêmico está a evoluir sem qualquer perigo… Há, por isso, que martelar no assunto…  Até porque há um ano que os telejornais não têm quase outro assunto para abordar…

A PASSIVIDADE CULPOSA DA REALIDADE AUDIOMÉTRICA DOS MEDIA
O pior é que não são só os media a proceder desta forma – pois, a eles, por motivos de audiências, até lhes interessa impor um certo suspense na informação que produzem e ampliam. Por isso, de modo a manter o público quase num constante estado de sobressalto, assiste-se a uma espécie de exercício de ampliação e consequente doseamento da intensidade do assunto tratado. É do estilo a montanha pariu um rato. E deste modo, sempre que o público esteja quase
a mudar de meio ou de canal, é lançado um “lembrete” para o manter sintonizado.

E como é que isto ocorre? Simples. Os meios de comunicação sabem que nós, como o que acontece com qualquer outro país do sul da Europa, somos, tradicionalmente, uma nação de “faca e alguidar”. Gostamos de um bom arraial! Aliás, não é ao acaso que os atuais líderes da audiência têm uma linha editorial que se sustenta num exercício de um sensacionalismo que parece quase vindo dos cabotinos do “Nome da Rosa” de Umberto Eco. É, no entanto, uma
prática(?) de jornalismo, muitas vezes, pouco ético e nada deontológico. Têm também conhecimento que a nossa dieta mediática é demasiado “light”. Isto é, enquanto audiência, queremos que o acesso à informação emitida seja imediato. E isto suplanta uma preocupação acerca da veracidade factual do que está a ser tratado. Não interessa que seja verdade, ou sequer se é assunto. O que se pretende é que se veja primeiro e que fundamentalmente nos entretenha. É por isso, por exemplo, que há tanto conteúdo autopromocional em alguns canais e espaços de informação!

No que concerne ao tratamento dos conteúdos, assiste-se, por parte dos meios de comunicação, a um esforço diminuto na problematização do assunto que está a ser exposto. Por vezes, nem há contraditório. Este pouco rigor revela-se numa simplificação das representações criadas sobre o assunto tratado. Em relação à mensagem transmitida, pode ver-se que há uma teatralização de mecanismos ampliadores. Aliás, num contexto repleto de pessoas mal-esclarecidas, a
espetacularização do conteúdo substitui o valor informativo. É o “divertir o povo com o povo” (Cintra – Torres, 2010). Porém, nem tudo é um “reality show”.

ESTE CÁRCERE EM QUE NOS ACHAMOS LIVRES
Michel Foucault falava acerca do papel punitivo que o estado tinha. Aliás, através desta proposta, tentava justificar o papel panótico que este mantinha nos sistemas prisionais sobre a sua população encarcerada. Nesta abordagem assiste-se a uma presença preconceituosa do estado perante cidadãos que tinham ficado privados de direitos adquiridos. Porém, será que, com o contexto pandêmico, tal já não está a ocorrer com a população em geral? Por isso, impõe-se a questão – “perante tanta vigilância, não estaremos já todos a cumprir pena?”

Já vimos que hoje, através de um discurso de pânico, que é constantemente mediatizado, manter um povo submisso é já quase um dado adquirido. É, no entanto, importante recordar que tal é possível porque somos instruídos e formados através do medo desde o berço. Quando somos crianças temos medo do escuro, de fantasmas, desconhecidos etc. E em adultos quase todos temos medo de morrer. Aliás, pode dizer-se que a nossa obediência, enquanto sociedade,
está assente neste sentimento. É um dos conceitos operacionais da humanidade.   Portanto, não será de estranhar que neste contexto atípico, munido de passividade do público perante o desconhecido, seja possível legitimar-se algumas restrições até alguns exercícios de autoritarismo. Aliás, há uma operacionalização do pânico e do medo que se
radicaliza caso alguém não seja obediente e incapaz de cumprir com as demandas.

Na esteira maquiavélica – pode dizer-se que: é governar pelo medo!  É, no entanto, importante recordar que foi neste berço pestilento que emergiu o nazismo e o fascismo – movimentos que impuseram a desastrosa crença de haver uma diferença entre seres humanos. Será que essa retórica dos “portugueses de bem” pode ser considerada um exemplo desta modalidade de raciocínio?

É que o contexto pandêmico atual tem imposto um sentimento de pânico que se revela, por exemplo, através do regozijo coletivo quando se assiste à promoção de um ideário mais punitivo perante quem não cumpre as imposições gerais. Para além do dever social de cada um, considero que há a necessidade de uma cuidada reflexão humanista deste tipo de postura incriminadora. Será que a aceitação deste procedimento penalizador em proveito da existência de um “bem-estar social não esteja a corroer os garantes sobre os quais se edifica a nossa sociedade”? Será que isto não pode ser obtido sem sermos tão mecanizados? É que convém recordar que a nossa história coletiva tem atestado recorrentemente que repressão e sociedade não convergem de uma forma digna. Aliás, os resultados são sempre desastrosos…

Luís Miguel Pato  
Profissional e docente em Ciências da Comunicação