A papeleira Navigator assumiu uma obra em curso de recuperação do canal condutor geral do rio Mondego, em Montemor-o-Velho, em domínio público hídrico do Estado, da responsabilidade da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que autorizou.
Agricultores e proprietários agrícolas, entre outros, não contestam a realização, por privados, da intervenção no canal – alegando que há anos que as celuloses são, na prática, os responsáveis pela manutenção da infraestrutura, já que a água, em especial a que a Navigator dali recebe, é crucial para a sua produção de papel e pasta de papel – mas apontam a falta de transparência do processo e a alegada ausência de mecanismos de contratação pública.
O canal condutor geral (também conhecido como canal de rega) é uma infraestrutura que se desenvolve adjacente ao dique direito do leito principal do Mondego, que serve para fornecer água às culturas de milho e arroz (cerca de seis meses por ano) e às explorações hortofrutícolas do Mondego. Mas serve principalmente as papeleiras Navigator e Celbi e garante parte do abastecimento público ao município da Figueira da Foz.
Desde finais de Dezembro de 2019 que decorre, na zona do canal condutor junto à ponte de Formoselha e estação de bombagem de Santo Varão, uma obra de recuperação do canal, que foi precedida da instalação, dentro do mesmo, de uma tubagem com cerca de 300 metros condutora da água que é bombeada a partir de uma bacia do leito abandonado do Mondego, adjacente ao leito principal do rio, do qual recebe a água por gravidade.
Nas cheias de 19 a 21 de Dezembro de 2019, o mesmo canal – que tem cerca de 40 quilómetros de extensão entre o açude-ponte de Coimbra e a Figueira da Foz – colapsou juntamente com o dique da margem direita do Mondego, cerca de mil metros acima da zona em obra, interrompendo a circulação de água e levando à instalação do sistema alternativo.
Em nota de imprensa divulgada em 15 de Janeiro, a APA referia estarem em curso os trabalhos de “fecho provisório” (entretanto já concluídos) dos dois diques – o direito do leito principal do Mondego e o talude esquerdo do leito periférico direito – que colapsaram durante as cheias, não fazendo, no entanto, referência à obra da Navigator.
Ouvido pela Lusa na mesma altura, o presidente da Câmara de Montemor-o-Velho, Emílio Torrão, afirmava que existiam na região duas obras de fecho provisório dos diques e uma terceira “feita pelas papeleiras” sobre a qual a autarquia “não foi informada”.
Já Armindo Valente, vice-presidente da Associação de Beneficiários da Obra Hidroagrícola do Baixo Mondego, entidade responsável pelo regadio agrícola do Mondego (mas não do canal de rega, cuja gestão e manutenção é da responsabilidade da APA) assumia que a obra “está a ser paga pelas indústrias para terem água”.
“Nós não contestamos a situação, até porque há uma boa relação entre os agricultores e a indústria. E se não forem as indústrias a pagar, com o Estado é um processo muito complicado para fazer o que quer que seja, porque tem de fazer contratação pública e as indústrias acabam por agilizar o processo”, argumentou.
Armindo Valente reconhece que, “na opinião pública, não se percebe como aquilo é feito, se [as indústrias] pagam menos taxas [de recursos hídricos] ou se há outra maneira de as ressarcir”.
Jorge Camarneiro, empresário e antigo vereador da CDU em Montemor-o-Velho, é taxativo quando refere que as celuloses “aparentemente sem contratos públicos, contratualizaram uma obra em propriedade pública e está mais do que claro que os procedimentos são mais ou menos lestos conforme os interesses das celuloses”.
“No dia das cheias, ainda estava tudo debaixo de água, com ameaça de roturas e de catástrofe e já as celuloses estavam a tratar de repor uma bomba [na estação do Foja] que não trabalhava há 20 anos. É legítimo, porque precisam de água, agora o que não é legítimo é que se oculte tudo isto, se faça tudo isto de uma forma meio secreta, quando se está a tratar de interesse público”, acusa o empresário de 60 anos, natural de Montemor-o-Velho.
Acresce que as intervenções feitas por privados em domínio público no Mondego já tinham sido alvo de reparo pelo Tribunal de Contas, em 2017, no âmbito de uma auditoria realizada aos Fundos Ambientais. Na sua análise, o TdC contestou uma candidatura da então Soporcel (hoje Navigator), realizada em abril de 2014, no valor de 2,5 milhões de euros ao Fundo de Proteção de Recursos Hídricos para “reabilitação de troços do canal condutor geral do Mondego”, após ter concluído, um mês antes, uma “reparação de emergência” com um custo de mais de 150 mil euros.
Na altura, o Tribunal de Contas argumentou que os trabalhos que a papeleira se propunha executar eram responsabilidade da APA, “respeitam a um canal situado no domínio público hídrico, que integra o Aproveitamento Hidráulico do Mondego e é propriedade do Estado”, e alegava não encontrar “motivos que justifiquem entregar a realização de uma obra pública a uma entidade privada quando esta é da competência de um instituto público”.
A agência Lusa questionou o ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) sobre a intervenção – que também levou à instalação de novas bombas em Santo Varão, duas com capacidade de 900 mil litros por segundo e outras duas de 600 mil – tendo a tutela respondido, por escrito, que “a reparação do canal adutor e a manutenção das respetivas infraestruturas do sistema de rega do baixo Mondego, fortemente danificadas pelas últimas cheias, são responsabilidade da Agência Portuguesa do Ambiente”.
“Considerando a previsível duração dos trabalhos de reposição total da infraestrutura hidráulica, essencial para a região, nomeadamente para os campos agrícolas e unidades industriais, a Celbi e a Navigator estão a apoiar, desde a primeira hora, nas obras de reconstrução”, adiantou o MAAC.
“Desde que ocorreram as cheias e o sistema adutor ficou inoperacional, as unidades fabris referidas estão a ser alimentadas de água de processo, através de um sistema alternativo instalado desde o início do canal na estação de bombagem de Santo Varão”, acrescentou.
Confrontada pela Lusa, fonte oficial do grupo The Navigator Company respondeu, também por escrito, com os mesmos três parágrafos transcritos acima na resposta do ministério do Ambiente, sem adiantar qualquer outra informação.
A tutela do Ambiente, sobre o facto do empreiteiro de Condeixa-a-Nova que está a realizar os trabalhos não ter aparentemente qualquer acordo com a Agência Portuguesa do Ambiente, explicou então que o contrato “é da responsabilidade da Navigator, que o comunicou à APA”, admitindo que a obra está a ser “executada” pela papeleira “sob coordenação e com acompanhamento constante da APA”.
Não tendo, numa primeira fase, a tutela esclarecido qual o procedimento administrativo que permitiu à APA entregar a obra à Navigator, o montante do investimento ou a forma de ressarcir a empresa privada dos investimentos em curso em domínio público hídrico, a Lusa solicitou novo esclarecimento, questionando qual o protocolo, contrato, despacho ministerial ou artigo da lei que o permite.
Na resposta, o MAAC refere que considerando a “urgência na reparação dos danos do troço do canal condutor geral que impossibilitaram o abastecimento” às unidades industriais, concessionária de águas, central da EDP e agricultura “e os meios e recursos próprios disponíveis”, a Navigator e Celbi, detentores de um Título de Utilização de Recursos Hídricos, “disponibilizaram-se de imediato a reparar o canal para reposição deste abastecimento, o que foi conseguido numa semana, antecipando a repartição de despesas de um [novo] modelo de gestão a implementar”.
Sem divulgar o montante total da intervenção, a tutela reafirma que a reparação dos danos no canal, “de cujo funcionamento as unidades industriais de celulose são beneficiárias diretas, foi autorizada pela APA e será suportada pela Navigator”, devendo estar concluída em meados de fevereiro.
Lusa