17.01.2025 –
Partiu uma parte da presença física de um dos grandes, senão, quiçá um dos maiores realizadores-autores da nossa contemporaneidade. Digo: “uma parte”, porque ele, David Lynch, continuará vivo através do eco incessante do seu vasto legado cinematográfico que está assente no cumprimento de uma premissa-base: a voz ativa e materializada de um autor passa, invariavelmente, pela presença implacável de uma identidade narratológica, que é praticada pelo sujeito poético e pela abordagem técnica que é usada no ato da sua criação enquanto conteúdo cinematográfico. Aliás, esta mesma tendência está presente em realizadores como Quentin Tarantino (“Pulp Fiction”) ou então, nos assuntos abordados na filmografia da autoria de Guillermo del Toro (veja-se o caso de “A Forma da Água”), ou até em alguns trabalhos de David Cronenberg (em: “eXistenZ” ou até o “Crash”).
Nascido no Montana, nos EUA, no pós-segunda guerra mundial (1946), David Keith Lynch – mais conhecido como David Lynch, cedo deu-se a conhecer ao grande público com o filme “Eraserhead” (1977). No entanto, foi só através de “Elephant Man” (1980) e principalmente pelo filme “Blue Velvet” (1986) e pela série televisiva “Twin Peaks” (1990 – 1991), transmitida em Portugal pela RTP1, que este realizador se deu a conhecer ao público português.
Quem não se lembra dos primeiros acordes do intemporal tema homónimo desta série, da autoria de Angelo Badalamenti, enquanto toda uma pequena cidade e o agente da FBI – Dale Cooper (protagonizado por Kyle MacLachlan) procuravam Laura Palmer (personagem protagonizada pela Sheryl Lee) que tinha desaparecido, ou não, e depois foi encontrada morta… ou talvez também não… Para compreender estas hesitações, o melhor será mesmo ver a série.
Em Lynch, a abordagem “noir” está presente em toda a sua obra que versa acerca de romances policiais e crimes assentes em narrativas complexas que abordam temas como a: corrupção, crime, traição e desejo. É uma forma de tratamento narratológica proveniente do Expressionismo alemão, dos anos vinte do século passado, imortalizada por obras como o “Gabinete do Dr. Caligari” (1920 – Robert Weine) ou “Nosferatu” (1922 – F.W. Murnau) ou em “M – O Vampiro de Dusseldorf ” (1931 – Fritz Lang) que convergem estas narrativas com contextos surreais, e que hoje podem ser testemunhadas na obra de Tim Burton (“O Estranho Mundo de Jack” e o “Eduardo Mãos de Tesoura” etc.) ou em policiais como o “Seven – sete pecados mortais” (1995 – David Fincher), “Crash” (1996 – David Cronenberg) e o “L.A. Confidential” (1997 – Curtis Hanson).
No que à estética, ao estilo e à técnica diz respeito, serve-se de abordagens assentes no contraste claro – escuro, com a presença de sombras dramáticas e de ângulos de câmara invulgares, em termos compositivos, para destacar protagonistas que, para além de emanarem uma presença quase cínica, desempenham pessoas desiludidas com a vida e até presas às amarras de serem quase anti-heróis. Têm, também, em comum, traços ambíguos e encontram-se num caminho que o espetador depreende, à medida que cada “frame” passa, irá terminar, invariavelmente, num contexto de autodestruição.
É na esteira destes traços e abordagens narratológicas que a obra de David Lynch se ergue… ora é insólita e estranha – deformando a realidade; ou então, conduz-nos para um contexto onírico que por vezes pode ser perturbador. Termino com uma frase de John Merrick (protagonizado por John Hurt) do filme: “Elephant Man” (1980) que ecoa o testemunho que se teve ontem da dimensão deste artista inconformado por opção: “a minha vida é plena porque sei que sou amado…”.
Luís Miguel Pato
Profissional de Comunicação
Docente no ensino superior em Comunicação
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