Um jornalista que esteve dois anos infiltrado na polícia parisiense descreve a profissão como uma das mais difíceis em França e relata o racismo recorrente dos agentes, defendendo que aquela força de segurança precisa de ser reformada.
Valentin Gendrot é jornalista e esteve infiltrado durante dois anos na polícia francesa contando tudo o que viveu num livro em que revela o quotidiano de uma esquadra da polícia parisiense.
É uma das profissões mais difíceis do nosso país porque estamos submersos em meios violentos no quotidiano. É algo extremamente difícil”, afirmou Valentin Gendrot, autor do livro “Flic”, em entrevista à agência Lusa.
O jornalista francês, que já tinha feito outras imersões como vendedor porta a porta ou trabalhador de call center, começou por fazer uma formação inicial de três meses como polícia contratado e durante todo o tempo que passou infiltrado nunca foi descoberto.
“Não há controlo para entrar na polícia. No meu quarto éramos seis e entre nós havia uma pessoa com cadastro juvenil, outra com claras ligações neo-nazis e eu, que sou jornalista. A polícia recruta quem pode”, considerou, explicando que depois dos ataques terroristas de 2015 foi preciso recrutar novos agentes.
Tal como os seus colegas, Valentin Gendrot terminou a sua formação com acesso a porte de arma na via pública, mas pouco treino relativamente a situações com que seria confrontado no dia a dia.
“Os polícias aprendem a fazer uma patrulha, um controlo na rua, a disparar, mas ninguém ensina verdadeiramente como intervir numa situação de violência conjugal. E a violência doméstica e problemas entre vizinhos são grande parte das intervenções da polícia numa cidade”, indicou.
Colocado na esquadra do 19.º bairro de Paris, testemunhou durante seis meses a incapacidade da polícia para fazer face aos problemas do dia a dia.
“No 19.º bairro há problemas de prostituição, droga, muitos roubos violentos. Mas esses roubos estão ligados ao consumo de ‘crack’. A polícia pode tentar apanhar quem rouba e quem vende o ‘crack’, mas os grandes traficantes não estão ali. Tocamos apenas na superfície dos problemas quando somos polícia de bairro”, indicou.
Em 2019, pelo menos 59 polícias em França suicidaram-se, o número mais elevado entre as forças de ordem gaulesas. Um dos casos aconteceu no comissariado do 19.º bairro de Paris enquanto Valentin Gendrot estava infiltrado.
Há muitos elementos que podem explicar o número de suicídios na polícia. Desde logo a diferença entre o que esperavam fazer e o que fazem realmente e o facto de uma parte da população detestar a polícia. Viver todos os dias com o ódio de uma parte da população é algo muito particular. Ao mesmo tempo, quando se é polícia vive-se na violência e na miséria social todos os dias”, declarou.
A isto juntam-se “as condições de trabalho completamente degradantes”, os baixos salários (um polícia contratado ganha de base 1.340 euros por mês), a falta de presença das hierarquias e de apoio psicológico, mas também a autorização de porte permanente da arma de serviço, permitido mesmo quando os polícias não estão a trabalhar.
Mas viver na violência acaba por exprimir-se também na violência cometida diariamente pela própria polícia.
“Claro que eu já tinha ouvido falar deste tipo de violência, mas há uma grande diferença entre ver na televisão e ser testemunha. A minha relação com a violência é de fugir, mas tive de ficar passivo perante o que vi. Eu não estava lá para fazer ondas, eu estava lá para mostrar como se passa a partir do interior”, contou o jornalista.
Um dos momentos mais polémicos no livro é quando o autor descreve um episódio em que um dos colegas bate num adolescente e em seguida produz um relatório falso sobre o que se passou, alegando que o jovem tinha agredido também o polícia. Gendrot participou nessa patrulha e na redação desse relatório.
“Em relação ao falso relatório e falso testemunho, eu podia não incluir esse episódio no meu livro e decidi fazê-lo porque tenho um pacto de honestidade em relação ao leitor”, disse o jornalista que viu a inspeção-geral da Polícia Nacional francesa abrir uma investigação a este caso específico após a saída do livro já que o jovem tinha posteriormente apresentado queixa contra o polícia em questão.
Valentin Gendrot descreve ainda o racismo recorrente face às pessoas controladas nas ruas e às pessoas detidas, com insultos como ‘bastardos’ a serem recorrentes face a pessoas negras, de origem árabes ou imigrantes em geral. “O racismo na polícia é algo muito grave e ainda mais grave porque a polícia representa o Estado francês”, considerou.
Após o seu período de imersão, Valentin Gendrot conclui que “a polícia francesa vai mal”. “A polícia chega mesmo a esconder as coisas que vão mal. Enquanto os polícias não falarem, nomeadamente sobre o mal-estar, as coisas só vão piorar”, considerou, avançando que a polícia precisa “ser reformada”.
Acusado de não respeitar a deontologia jornalística, Valentin Gendrot defende-se dizendo que respeitou na íntegra as regras da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) e garante que o seu tempo na polícia entrou também no seu quotidiano.
“Cresci num meio sereno e nunca tinha conhecido um meio violento. Esta passagem pela polícia fez com que eu me tenha tornado mais desconfiado face ao outro.”, concluiu.
Lusa