Ihor Homenyuk. Inspetores do SEF condenados a sete e nove anos de prisão

Três inspetores do SEF estavam acusados do homicídio do ucraniano Ihor Homeniuk, em março de 2020, após o Ministério Público pedir a sua condenação e a defesa a absolvição dos arguidos. Acabaram condenados por ofensas à integridade física qualificada, agravada pela morte, com penas inferiores às pedidas pela acusação.

O Tribunal Criminal de Lisboa condenou hoje os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteira (SEF) a nove anos e sete anos pelo crime por ofensa a integridade física grave qualificada, agravada pelo resultado morte do ucraniano Ihor Homenyuk a 12 de março de 2020.

Duarte Laja e Luís Silva foram condenados a nove anos (por terem mais responsabilidade) e Bruno Sousa a sete anos.

O tribunal não deu como provada a acusação de homicídio qualificado, tendo também deixado cair a acusação de posse de arma ilegal (bastão extensível) que pendia sobre os dois primeiros inspetores.

No entanto, na leitura do acórdão, o juiz Rui Coelho não deixou de considerar que “a morte de Ihor Homeniuk foi consequência direta da conduta dos arguidos e que tinham o dever de agir de forma diferente”.

O tribunal decidiu também extrair certidão para se investigar o comportamento dos vigilantes e dos outros inspetores envolvidos na situação e com funções de coordenação.

“Todos aqueles que acharam por bem controlar Ihor amarrando-o como uma embalagem, todos aqueles com funções de chefia, por tudo isto adiante se extrai certidão do presente acórdão para investigação dos vigilantes do turno da noite, dos vigilantes do turno do dia, dos inspetores que nada fizeram para o assistir, dos inspetores do SEF com coordenação e chefia que deram ordem e que não cuidaram de saber”, frisou.

“Grau de culpa dos arguidos muito elevada”

Segundo o acórdão, a que a Lusa teve acesso, os inspetores Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa, perante o estado de Ihor Homeniuk, “sabiam” e “tinham que saber, que não poderiam agir como o fizeram”, ou seja, “não poderiam bater naquela pessoa, algemá-la, deixá-la assim, prostrada, e abandoná-la à sua sorte, aos cuidados de outros, cuidados esses que, até ao momento, não tinham resolvido a questão”.

Assim, o coletivo de juízes, presidido por Rui Coelho, concluiu que a culpa dos arguidos “é muito elevada”, embora neste patamar se distinga o grau de culpa entre os inspetores Luis Silva e Duarte Laja, que tinham mais anos de exercício de funções no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), do que o arguido e inspetor Bruno Sousa.

“São manifestas as diferenças de responsabilidade operacional entre eles, porquanto o mais novo dos inspetores [Bruno Sousa], com tantos anos de diferença, não lidaria de igual com os colegas. Ou seja, logo implícito que lhe cumpriria fazer aquilo que os mais antigos decidissem. Nessa medida, tanto mais que estava em minoria, não lhe cumpria decidir o que fazer, mas acompanhá-los à medida do desenrolar dos acontecimentos. Por tudo isso, a culpa de Bruno Sousa é menor do que a dos outros dois arguidos”, lê-se no acórdão.

Na ponderação da pena, o coletivo de juízes teve em conta o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução, o qual “importou um sofrimento prolongado e agonizante”, bem como “as repercussões, graves, pelo impacto social da conduta”.

Na determinação da medida da pena aplicada aos arguidos, o tribunal relevou ainda “a intensidade do dolo (direto), as condições pessoais de cada arguido, as suas habilitações literárias e situação económica, assim como a sua conduta anterior e posterior ao facto ilícito cometido contra Ihor Homeniuk.

O tribunal absolveu Duarte Laja e Luís Silva do crime de posse de arma ilegal (bastão extensível), mas, tendo em consideração as repercussões desta condenação sobre o vínculo profissional dos arguidos, o tribunal decidiu que não poderão voltar “a utilizar os bastões extensíveis” e nessa medida determinou “a sua perda a favor do Estado e entrega dos mesmos ao Departamento de Armas e Explosivos da PSP, a fim de lhe ser dado destino que for tido por mais conveniente”.

No acórdão, o tribunal considerou que a morte de Ihor Homeniuk foi “consequência direta da conduta dos arguidos”, pois estes praticaram os factos que “causaram as lesões que culminaram naquele resultado (morte).

“E tinham o dever de agir de forma diferente, mais diligente, de não provocar a situação que culminou com a perda da vida. Mas não o fizeram, assumindo assim as consequências por tal interferência desmedida”, lê-se no acórdão que tem 70 páginas.

Segundo o acórdão, da prova resulta que, em 20 de março de 2020, os arguidos, após abandonarem as instalações do Centro de Instalação Temporária (CIT), “retornaram aos seus postos, onde desempenhavam funções na primeira e segunda linhas (unidade de apoio) de intervenção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa.

“Sabiam, pelos seus procedimentos habituais, que não lhes caberia fazer o seguimento de Ihor Homeniuk. Tanto assim foi que cuidaram deixar as chaves das algemas na receção daquele centro, para que outros, mais tarde, as usassem ao libertar a vítima. Pelo meio, pediram, em tom de ordem decorrente da prevalência que os inspetores do SEF tinham sobre os vigilantes, para não ser registado aquele seu acesso ao CIT”, onde, de acordo com a prova produzida em julgamento, agrediram Ihor Homeniuk, deixando-o algemado com as mãos atrás das costas.

Segundo o tribunal, os arguidos “não esperavam que algum vigilante tirasse as algemas porque não tinham autoridade para tanto” e também “não esperavam que outros colegas ali se deslocassem para remover as algemas, porque o objetivo da sua intervenção era, exatamente, tornar desnecessário que outros ali tivessem que se deslocar por causa de Ihor Homeniuk”.

Na audiência de hoje, o juiz Rui Coelho determinou ainda a extração de certidão do acórdão e o seu envio para o Ministério Público para efeitos “de investigação do comportamento dos vigilantes do turno da noite pela forma com trataram Ihor Homeniuk (atado de pés e mãos com fita adesiva), dos vigilantes do turno de dia pela forma como nada fizeram para auxiliar um homem em sofrimento, dos inspetores do SEF que presenciaram a intervenção dos arguidos e até foram ver o estado em que Ihor ficou depois, e nada fizeram para o assistir nas horas que se seguiram”.

Extraiu também certidão para que o MP investigue “a atuação dos inspetores do SEF com funções de coordenação e chefia que deram a ordem aos arguidos, foram informados do cumprimento dessa ordem, e não cuidaram de garantir que a Ihor Homeniuk era prestada a devida assistência, que lhe eram retiradas as algemas, que era devidamente tratado, até à hora do seu embarque”, de regresso à Ucrânia, via Instambul.

“Pelo menos justiça foi feita”. Advogado da família diz que condenações servem de exemplo

À saída do Tribunal Criminal de Lisboa, o advogado da viúva de Ihor, José Gaspar Schwalbach, considerou as condenações dos três inspetores “o final de uma etapa”, mas também “um primeiro passo” pois “o julgamento não terminará aqui”.

Questionado quanto às durações das penas, inferiores às pedidas pelo MP, o advogado defendeu que nenhuma pena “será suficiente para trazer de volta” Ihor, optando por destacar que os inspetores “foram condenados pela morte” do cidadão ucraniano.

“Pelo menos, justiça foi feita e as três condenações serviram de exemplo para todos os inspetores, para todos os membros da polícia que fazem o seu trabalho com dificuldades todos os dias mas não podem nunca abusar do seu poder para prejudicar as pessoas”, disse José Gaspar Schwalbach, considerando as condenações “um bom passo para mostrar que o nosso país não se deixa prender e não permite que este tipo de situações fique esquecido pela polícia”.

Sobre a permanência dos arguidos em prisão domiciliária, José Gaspar Schwalbach admitiu poder entregar um requerimento a pedir que a medida de coação seja agravada para prisão preventiva, face à condenação proferida pelo tribunal.

Segundo a acusação do Ministério Público, Ihor Homeniuk morreu por asfixia lenta, após agressões a pontapé e com bastão perpetrados pelos inspetores, que causaram ao passageiro a fratura de oito costelas. Além disso, tê-lo-ão deixado algemado com as mãos atrás das costas e de barriga para baixo, com dificuldade em respirar durante largo tempo, o que terá causado paragem cardiorespiratória.

Segundo o MP, ficou “demonstrado pela autópsia que as agressões foram feitas com pontapés e agressão com bastão” ao cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, que estava retido no Centro de Instalação Temporária do SEF, no aeroporto de Lisboa, e que pretendia vir trabalhar para Portugal, tendo o SEF a intenção de o recambiar para o país de origem (Ucrânia), via Istambul, Turquia.

Advogados de inspetores anunciam recurso e esperam “justiça completa”

“Vou continuar a pedir uma absolvição, é evidente que vamos recorrer. Mas este foi mais um passo na direção certa: aos poucos vamos apurando a verdade e vamos chegando lá”, afirmou a advogada do arguido Luís Silva, Maria Manuel Candal, à saída do Juízo Criminal de Lisboa, secundada pelo colega Ricardo Sá Fernandes, representante do arguido Bruno Sousa: “Têm uma grande confiança em que este não seja o resultado definitivo”.

Para o causídico, os três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foram o “bode expiatório deste processo”, vincando também a sua oposição à leitura do tribunal sobre a autoria das agressões.

“O tribunal assumiu que a responsabilidade pela morte tinha decorrido das agressões feitas pelos nossos clientes. Com toda a sinceridade (…), não percebi bem como é que o tribunal chega à conclusão de que foram os nossos clientes que bateram no cidadão. No fundo, constrói a ideia de que eles bateram com socos e pontapés em número indeterminado, com base numa dedução, numa presunção, que me parece pouco fundamentada”, notou Ricardo Sá Fernandes.

Defendendo que a morte de Ihor Homeniuk “foi o resultado da ação de muitas pessoas que não estavam aqui a ser julgadas”, o advogado de Bruno Sousa – condenado a sete anos de prisão – assumiu ainda a sensação de que foi feita “alguma justiça” pelo reconhecimento por parte do juiz Rui Coelho de que não existiu homicídio por parte dos arguidos.

“O facto de se ter reconhecido que estes homens não torturaram e assassinaram o cidadão ucraniano é uma reposição da justiça, porque recordo-me que durante muitos meses ouvi em uníssono na sociedade portuguesa a versão de que estes homens tinham batido até à morte no senhor Homeniuk”, observou, assegurando: “Espero que em recurso venhamos a obter outros avanços. Vamos acreditar que num tribunal superior vamos conseguir a justiça completa que ambicionamos.”.

Já Ricardo Serrano Vieira, representante legal de Duarte Laja – condenado a nove anos de prisão – manifestou “algumas dificuldades de compreensão” com a sentença face ao reconhecimento da eventual participação de outras pessoas nos factos que levaram à morte do cidadão ucraniano, por causa da extração de certidão sobre os vigilantes e outros inspetores.

“Se essa atuação está sob suspeita, veio ao encontro daquilo que a Defesa sempre tinha dito: que podia haver outras causas que concorressem para um desfecho. Não se consegue admitir que alguém venha a ter um processo judicial por investigação de factos que possa ter praticado quando nós afastamos à partida que essa pessoa possa ter contribuído para um determinado resultado, neste caso, a morte”, referiu.

Já Maria Manuel Candal relembrou que os arguidos foram absolvidos do crime de detenção de arma proibida e que também foi alterada a imputação do crime de homicídio qualificado para ofensas à integridade física graves qualificadas pelo resultado. A advogada reiterou ainda a contestação ao parecer da autópsia usado no julgamento.

“Temos um parecer técnico muitíssimo bem fundamentado que põe em causa as conclusões dessa autópsia. Provavelmente, iremos ainda sustentar o recurso com base num outro parecer técnico que a meu ver irá, mais uma vez, pôr em causa as conclusões”, concluiu.

A morte de Ihor Homeniuk à guarda do SEF motivou uma crise política, a que se seguiu uma reestruturação deste serviço, que o ministro da Administração Interna justificou estar há muito prevista no programa do Governo, mas que não agrada aos sindicatos do setor.

Madremedia