Biólogos contratados pelo Estado propuseram classificação ecológica para proteger golfinhos na área. Ministério do Ambiente confirma travagem em plano que dificultaria aprovação das polémicas dragagens.
Catarina Eira, investigadora da Universidade de Aveiro, liderou a equipa de biólogos que estudou as zonas marinhas que na costa portuguesa deveriam ser classificadas, incluindo-as na Rede Natura 2000, a rede ecológica da União Europeia. O principal objetivo seria proteger cetáceos, nomeadamente golfinhos.
O trabalho durou sete anos e deu lugar a uma proposta que esteve em discussão pública em 2016. A discussão pública foi feita, mas nunca existiu uma decisão definitiva e só este ano, em agosto de 2018, se avançou com uma nova discussão pública, agora para definir os planos de gestão que definem como serão mantidos os valores naturais das zonas, nomeadamente recifes e bancos de areia (os mesmos que agora vão ser dragados).
No entanto, das quatro zonas propostas para proteger cetáceos na costa nacional apenas avançaram duas, ficando de fora as duas que colidem de forma evidente (basta ver os mapas) com as dragagens da entrada do Rio Sado para que o Porto de Setúbal receba navios de maior dimensão.
Catarina Eira conta à TSF que ficou espantada quando reparou que, dois anos depois de feita a primeira consulta pública, o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) não avançou com a segunda consulta para aprovar os planos de gestão destes sítios de importância ecológica para os golfinhos na Costa de Setúbal e no Estuário do Sado, apesar dos mesmos já terem sido fechados pelos biólogos.
Na prática, ainda nada na área marinha portuguesa está classificado como fazendo parte da Rede Natura 2000, uma exigência que, segundo explica Catarina Eira, já devia estar cumprida há três anos, de acordo com as leis europeias, num processo lento que está a andar a velocidades diferentes conforme o sítio proposto.
A proposta para a Costa de Setúbal e para o Estuário do Sado classificaria como rede ecológica da União Europeia toda a zona alvo das dragagens de areias.
Recorde-se que as dragagens de grande dimensão que avançam este mês em Setúbal estão a levantar polémica, com acusações de grupos de cidadãos, pescadores e ambientalistas de que ficam em causa as praias da Arrábida e a presença da comunidade residente de golfinhos que circula exatamente na área que será alargada para a entrada no Sado de navios de maiores dimensões.
Classificação ecológica dificultaria dragagens
Desconhecendo as razões para o adiar dos planos que iriam proteger a entrada do Sado, a bióloga da Universidade de Aveiro apenas constata que os planos que andaram a desenvolver durante anos, a pedido do Estado português, cumprindo as diretivas europeias, ainda não saíram do papel, mantendo aquela zona sem a necessária proteção dos habitats marinhos onde andam os golfinhos, nomeadamente os bancos de areias.
O presidente da associação ambientalista Quercus, João Branco, é, no entanto, claro e diz ser evidente que este adiar dos sítios de proteção está relacionado com as dragagens para aumentar brutalmente a capacidade do Porto de Setúbal.
João Branco adianta à TSF que não tem dúvidas que a classificação ecológica complicaria a aprovação das dragagens, permitindo, por exemplo, processos judiciais e queixas na Comissão Europeia.
“Dragagens travaram proteção ecológica”
“Não é normal uma área protegida estar prevista e em consulta pública e de repente desaparecer. Há uma relação direta pois o Governo deixou cair esta área protegida para fazer as obras no Estuário do Sado sem contestação”, diz o presidente da Quercus, recordando que aquela zona alvo das dragagens não tem hoje qualquer classificação que permita proteger os ecossistemas.
O biólogo do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE), que vai coordenar a fiscalização dos efeitos das dragagens sobre os golfinhos, admite que é bem possível que a obra tivesse de ter outro enquadramento legal se a zona já estivesse classificada como Rede Natura, dificultando a sua aprovação.
Manuel Eduardo dos Santos defende, contudo, que não é a melhor pessoa para fazer essa análise e que quem aprovou as obras também se preocupou com o bem-estar dos animais.
Governo explica travagem
Questionado pela TSF, o Ministério do Ambiente confirma que recebeu e levou a consulta pública a criação de uma nova área de proteção ecológica na Costa de Setúbal e o alargamento da área protegida do Estuário do Sado.
No entanto, o gabinete do ministro Matos Fernandes diz que estas decisões são tomadas em Conselho de Ministros e com portarias conjuntas do Ministro do Ambiente e dos ministros “com tutela sobre os setores com interesses relevantes”.
Não são indicados nomes de ministérios, mas o Ministério do Mar tem sido um forte defensor das obras de alargamento da capacidade do Porto de Setúbal.
Se para as zonas perto de Aveiro e Costa Sudoeste foi possível encontrar “um consenso prévio e genérico dos outros setores”, o mesmo não aconteceu para a Costa de Setúbal e Estuário do Sado.
Sem responder se a inclusão de mais área do Estuário do Sado e da Costa de Setúbal na Rede Natura 2000 teria consequências nas dragagens, o Ministério do Ambiente sublinha que a intervenção foi “sujeita a avaliação de impacte ambiental, no âmbito da qual são sempre avaliadas as matérias de conservação da natureza e biodiversidade, assim como apontadas as medidas de minimização dos potenciais impactes”.
Manifestação no sábado
Para este sábado está marcada uma manifestação, em Setúbal, contra as dragagens. As associações que a organizam – a Zero, Quercus e Liga para a Proteção da Natureza (LPN) -, além de vários grupos locais de moradores e até pescadores, acusam a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra de querer “transformar Setúbal num porto de águas profundas como o porto de Sines, retirando ao rio Sado 6,5 milhões de metros cúbicos de areia”, colocando em risco “a sobrevivência da já reduzida e protegida colónia de golfinhos roazes do Sado”.
Nuno Guedes / TSF