A passar na Quinta-Feira, 12 de Março, RTP2 pelas 23:00 horas, este episódio do programa “Povo que Ainda Canta” leva-nos a conhecer uma das formas musicais mais antigas, pitorescas e ignoradas do país: os Gaiteiros de Coimbra. Trazendo nos ombros vários séculos de tradição, estes conjuntos instrumentais mantêm as mesmas funções cerimoniais que os seus antepassados. Estas gentes, portadoras de conhecimentos valiosos, continuam a exercer com brio e orgulho o que lhes é destinado por direito próprio, não sob forma de representação folclórica mas na execução de função efectiva. Procissões, novenas, missas, arruadas e peditórios são parte da cultura musical mais genuína das populações que vivem em torno da cidade. Coimbra recebe estas gentes, de origem rural, uma vez por ano, num evento que os junta em festa com os “doutores” da Universidade na Queima das Fitas de Coimbra.
Cantanhede, terra de Grandes Gaiteiros.
As terras que constituem o concelho de Cantanhede conheceram, ao longo dos tempos, grandes e famosos gaiteiros. Perdem-se nas memórias os nomes desses gaiteiros, que surgem, no entanto, em registos paroquiais e mesmo em periódicos do século XIX. Com toda a probabilidade, encontram-se gaiteiros, de profissão, nas árvores geneológicas dos naturais de Cantanhede. “Aqui não havia gaiteiros”, exclamou o historiador Dr. Roger Lee de Ançã. Qual o seu espanto quando encontrou não um mas vários gaiteiros de profissão como seus antepassados enquanto elaborava a árvore geneológica da sua família. “Afinal sou penta-neto de gaiteiro!”.
Cantanhede é um dos polos do grande triângulo de gaiteiros do distrito de Coimbra. Condeixa e Penacova são os restantes. Entre esses pontos ainda existem gaiteiros tradicionais. João Pereira, da Pena, que trabalhou nas pedreiras de extracção da famosa Pedra de Ançã, é um dos herdeiros da ancestral função desempenhada pelo gaiteiro: festas, bailes, arruadas, peditórios e procissões fazem parte do seu currículo.
Joaquim Torres, com 85 anos, é um dos mais velhos gaiteiros do país, da Póvoa da Lomba, que integrou vários grupos de gaiteiros, de entre os quais “Os Amigos da Rambóia”, de Barcouço, grupo que remonta ao século XIX. Exímio tocador, possui uma gaita-de-foles que pertenceu ao Ti Carnim, um histórico gaiteiro da Granja, Ançã. Faz-se acompanhar, no episódio Gaiteiros de Coimbra, na caixa por Abel Ribeiro – filho de Joaquim Ribeiro (1913-2004, Ourentã, Cantanhede), tocador de gaita-de-foles – e por Serafim Conceição no bombo. E fazem-no com extremo orgulho e dignidade.
Numa missa presidida pelo Padre Manuel de Jesus para a celebração do aniversário da Banda Filarmónica de Ançã, na Igreja Matriz, toca-se um hino de Elevação durante a Consagração. Tal prática, antiquíssima, está a ser retomada em terras do Norte de Espanha e no sul de Itália. Ainda hoje encontramos pessoas de idade avançada que se recordam de ver o gaiteiro tocar nas missas, na zona de Coimbra, em várias momentos: Elevação, Santos, início e final da eucaristia. Ainda hoje se encontram práticas antigas em que o gaiteiro toca na Igreja: na Serra da Boa Viagem, por exemplo, o gaiteiro acompanha os cânticos das Novenas nas festas do Espírito Santo.
Numa representação folclórica da função festiva do gaiteiro, o Grupo Típico de Ançã interpreta o Rodízio, numa gaita Coimbrã que pertenceu a David Gomes (gaiteiro de Barcouço do século XIX). O baile fazia parte da função do gaiteiro, onde nos terreiros, eiras e largos se ensaiavam passos de dança. Como nos descreve o sr. Alberto de Almalaguês: “aprendi a dançar com a música dos gaiteiros, que vinham dali do Senhor da Serra. Era a única hipótese que tínhamos de poder chegar mais perto das moças, naquele tempo”.
Os gaiteiros – os únicos agrupamentos musicais da região de Coimbra que mereceram a atenção de musicólogos. Foram gravados por Armando Leça, Ernesto Veiga de Oliveira, Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça desde os anos 30 do século passado. “A música do Zé Pereira é a música mais linda e mais antiga que há, porque é a única música que acompanha o Senhor” declarava o Dr Ernesto Veiga de Oliveira, estudioso que percorreu o país em busca de Instrumentos Tradicionais Portugueses. E continua: “O Gaiteiro, realmente, por direito próprio, acompanha as Procissões… e os instrumentos de corda não. Acompanha as Procissões, toca nas festas Municipais, nas coisas importantes. E também entra na igreja!”
Actualmente o gaiteiro, na região de Coimbra, continua a sua função: bailes, alvoradas, arruadas, peditórios, inaugurações, cortejos, procissões religiosas, visitas pascais, novenas e missas.
Algumas entidades culturais têm contribuído para a manutenção e dignificação desta forma musical tão antiga quanto a Portugalidade. O Centro Cultural e Recreativo da Pena, com a organização anual do fabuloso Encontro Regional de Gaiteiros – que se diga em boa verdade, apresenta padrões de qualidade ao nível de um Encontro Internacional – tem tido um papel fulcral na homenagem aos gaiteiros mais antigos. À sua custa muitos jovens têm-se mostrado extremamente interessados na continuação de uma tradição, a última da região que mantém as funções, que muitas vezes não entendem ser tão importante até que a experimentam. A Academia de Música de Ançã é outra das instituições de Cantanhede que contribui para esse despertar de consciências, organizando desde há mais de uma década, cursos de gaita-de-foles nas suas instalações. E muitos têm sido os interessados. O mais velho dos seu alunos tem 70 anos!! “Era uma paixão de pequenino. Sempre que via o gaiteiro corria atrás dele durante todo o dia. Era uma festa. Aquele som, tão da minha terra, ficou para sempre cá dentro”.