O Parlamento Europeu, em Estrasburgo, França, vota hoje a primeira diretiva europeia sobre a proteção de denunciantes, impulsionada pelas revelações do Football Leaks e pelo papel do português Rui Pinto.
O único rosto conhecido até agora do Football Leaks está a colaborar com Estados-membros como França, Bélgica e Holanda em investigações dos respetivos países com origem em documentos obtidos ou divulgados por esta plataforma eletrónica, lançada em setembro de 2015, e do qual Rui Pinto é confesso colaborador.
Rui Pinto está sujeito à medida de coação de prisão preventiva, em Lisboa, indiciado por seis crimes relacionados com acessos ilegais aos sistemas informáticos do Sporting e da Doyen Sports, e com uma suposta tentativa de extorsão a este fundo de investimento, mas o Football Leaks vai muito além deste processo.
O ‘caso’ Rui Pinto não tem paralelo na história recente da justiça portuguesa e provocou um debate internacional sobre o conceito do ‘whistleblower’ (denunciante) e o equilíbrio entre o direito à reserva de pessoas e empresas e o alegado interesse público nas informações conseguidas através da plataforma Football Leaks.
Quais os crimes pelos quais Rui Pinto está indiciado?
O colaborador do Football Leaks está indiciado de seis crimes: dois de acesso ilegítimo, dois de violação de segredo, um de ofensa a pessoa coletiva e outro de extorsão na forma tentada, todos relacionados, apenas, com acessos aos servidores do Sporting e da Doyen, em 2015, bem como a uma alegada tentativa de extorsão a este fundo de investimento.
Que factos estão descritos na alegada tentativa de extorsão à Doyen?
O Ministério Público português conta que, na manhã de 03 de outubro de 2015, Nélio Lucas, representante legal da Doyen, recebeu um email de Rui Pinto, que se identificou como Artem Lobuzov, informando-o de que estava na posse de informação confidencial relativa ao grupo Doyen.
Rui Pinto mostrou-se disponível para não divulgar tais documentos, mediante contrapartida de uma “doação generosa”, que se situaria entre os 500 mil e um milhão de euros.
Em 21 de outubro de 2015, de acordo com a investigação, realizou-se um encontro presencial entre Nélio Lucas e o seu advogado com Aníbal Pinto, à data representante legal de Rui Pinto, numa estação de serviço da Autoestrada A5, em Oeiras, que foi acompanhado de perto pela Polícia Judiciária, após queixa da Doyen.
Nessa reunião, Aníbal Pinto referiu que o seu cliente foi o autor e responsável pela criação do domínio e conteúdos divulgados no site http://football-leaks.livejournal.com e que pretendia, em nome do seu cliente, celebrar um acordo com a Doyen, que conciliasse as posições de ambas as partes.
No encontro, o advogado referiu ainda que o seu cliente estaria disposto a receber a quantia acordada em prestações anuais (durante três a cinco anos), assegurando total confidencialidade do acordo que viessem a celebrar. Contudo, o acordo não viria a concretizar-se.
Quanto tempo tem o Ministério Público (MP) para deduzir acusação?
O MP tem seis meses para deduzir acusação (até 22 de setembro), contados a partir do dia em que foi decretada a prisão preventiva (22 de março) ao colaborador do Football Leaks. Se assim não for, Rui Pinto sairá em liberdade. Contudo, se o MP requerer a especial complexidade do processo e o juiz de instrução criminal aceitar, terá mais seis meses (até 22 de março de 2020) para acusar o jovem, alargando assim o prazo de prisão preventiva.
Qual a moldura penal dos crimes imputados a Rui Pinto que constam no Código Penal (CP)?
Acesso ilegítimo – de um a cinco anos de prisão – previsto e punido pelo artigo 6.º n.º 1 e 4, al. a) e b) da Lei 109/2009.
Violação de segredo – pena de prisão até um ano ou pena de multa até 240 dias – previsto e punido pelo artigo 195º e 197º do CP. Contudo, ao abrigo do artigo 197 do CP, estas penas podem ser agravadas num terço nos seus limites mínimos e máximos.
Ofensa à pessoa coletiva – pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias – artigo 187.º do CP.
Extorsão na forma tentada – moldura penal de dois anos e cinco meses a 10 anos de prisão – previsto e punido pelo artigo 223 n.º 1 e 3 al. a) do CP, com referência ao artigo 22.º, 23.º e 204.º n.º 2 al. a). Foi este crime que permitiu a aplicação da prisão preventiva.
Quem é que já se constituiu assistente no âmbito desta investigação?
O Sporting, a Doyen e o Benfica constituíram-se assistentes no processo, o que lhes permite intervir no inquérito e na fase de instrução, apresentar provas e requerer diligências que considerem necessárias. No dia em que Rui Pinto ficou em prisão preventiva (22 de março), fonte do Benfica disse à Lusa que requereu junto do Ministério Público informação sobre a prova produzida na investigação. Rui Pinto é suspeito de ser o autor do furto dos emails do clube da Luz, em 2017.
O que é o princípio da especialidade?
A defesa do arguido já invocou este princípio, ou seja, Rui Pinto só pode ser investigado, acusado e julgado pelas autoridades portuguesas apenas pelos alegados factos e crimes que constam do mandado de detenção europeu, relacionados com o Sporting e a Doyen. Contudo, se o MP solicitar às autoridades húngaras a extensão do mandado de detenção europeu, com base em indícios ou provas relacionados com outros factos, caberá à justiça da Hungria decidir sobre esse novo pedido. A PJ apreendeu diverso material informático na posse de Rui Pinto quando o deteve em Budapeste, em janeiro deste ano.
Qual é o enquadramento jurídico do estatuto de denunciante (‘whistleblower’) em Portugal?
Portugal, à semelhança de outros países, não prevê este estatuto. A lei portuguesa apenas regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado, sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo.
O que está a ser feito pela União Europeia (UE) nesta matéria?
O Parlamento Europeu vota hoje a primeira diretiva europeia de proteção de denunciantes.
Esta diretiva europeia pode ser aplicada de imediato nos Estados-membros?
Não. Sendo uma diretiva europeia, entra em vigor ao fim de 20 dias, mas depois os Estados-membros terão até dois anos para a transpor para a legislação nacional. Dependerá, pois, da vontade política a rapidez com que Portugal irá transpor esta diretiva. Atualmente, a proteção oferecida aos denunciantes na UE é fragmentada e desigual. Apenas 10 países garantem plena proteção aos denunciantes (França, Hungria, Irlanda, Itália, Lituânia, Malta, Holanda, Eslováquia, Suécia e Reino Unido). Nos restantes, a proteção concedida é parcial e apenas se aplica a setores específicos (como no domínio dos serviços financeiros) ou a determinadas categorias de trabalhadores por conta de outrem.
O que diz a diretiva europeia sobre a proteção de denunciantes?
Esta legislação – a primeira a nível europeu sobre a proteção dos denunciantes – aplicar-se-á às pessoas que pretendam alertar para eventuais violações do direito da União Europeia em vários domínios, incluindo o branqueamento de capitais, a fraude fiscal, a contratação pública, a segurança dos produtos e dos transportes, a proteção do ambiente, a saúde pública, a proteção dos consumidores e a proteção dos dados pessoais.
Os legisladores europeus introduziram uma maior flexibilidade na diretiva, permitindo que o autor da denúncia possa escolher o canal mais adequado para alertar para as violações em causa, quer seja a nível interno (dentro da organização onde trabalha) ou externo (junto das autoridades públicas).