“Como o catraio e ladino da Praia de Mira cresceu” (Manuel Gabriel)

“Nasceu num palheirinho de madeira bem pertinho da sua muito querida barrinha, onde mais tarde soube tirar todo o proveito e regalo desta que viria a ser uma relíquia desta tão bonita região centro.

Foi crescendo sempre num meio quotidiano, entre a linda barrinha e o mar, onde mais tarde seria o seu campo de batalha, viveu num ambiente onde a humildade superava qualquer rivalidade que houvesse entre estes povos que nesta bonita praia habitavam.

Brincava como todos os meninos quer fossem novos ou mais velhos, e com todas as brincadeiras artesanais, tais como; piões, rodas, botões calhas, o jogo do prego, as bugalhas, as fundas, as costelas, as acachadas, a bela moeira, o mosquita ou moscardo, a roça, a cataca, os aviões de cana, os mata moscas, os telefones de caixa de fósforos, os papagaios de papel, etc. etc. etc.

Chegada á sua idade de sete anos, iniciava novo ciclo da sua vida a entrada para a escola primária.

E todos os dias de segunda a sábado, lá ia o menino com seu saquinho ás costas, feito de um bocado de pano qualquer, que sua mãe lhe podia arranjar, (descalço com pouco agasalho, e ás vezes esfarrapado) bastava que levasse dentro o seu livrinho da primeira classe, uma lousa «a que nós chamava-mos pedra» um ponteiro, um lápis, e um caderno de duas linhas, e outro de contas, e um bocado de borracha que servisse para apagar qualquer erro, e estava pronto para um novo desafio que lhe havia de servir por toda a sua vida.

Entrava para a escola às nove da manhã, ao meio dia vinha ao seu palheiro comer qualquer coisa, voltava e saía por volta das três e meia da tarde com suas continhas para fazer em sua casa.

Logo que acabava de fazer seus trabalhos de casa, lá ia para a rua brincar com outros meninos com as brincadeiras adequadas dessa época.

Quando já mais crescidinho nas suas férias grandes que iam de fins de Julho a princípios de Outubro, eram passadas na praia junto com muitos meninos que andavam na borda do mar apanhando os excrementos que os animais deixavam na praia quando o mar era manso, e as companhas fossem ao mar, que mais adiante falaremos das já referidas companhas.

Foi crescendo entre a escola e as brincadeiras, começando a escolher os amigos que lhe eram mais fiáveis, estes que lhe iriam ficar na sua memória quando já homem, e se recordasse do que foi a sua infância.

Chegando assim á idade de treze anos idade com que fez o seu exame de quarta classe, o que não acontecia com todos (havia muitos meninos e meninas que chegavam ao exame de terceira classe, e já não seguiam mais para a frente, ou porque seus pais necessitavam dos seus trabalhos ou porque o menino ou menina em causa não tinha vocação para seguir em frente) daqui já então com seu exame feito, era hora de começar a trabalhar.

Então como estamos a falar do início da vida de um menino, catraio, e muito ladino que viveu a sua infância entre muito frio e muito calor, começou a ser homem muito cedo seguindo assim as pegadas de seus Pais, e assim como muitos outros meninos entravam para o mercado do trabalho apenas com treze ou catorze anos de idade.

Vamos então começar pelo seu primeiro trabalho, deste menino catraio.

Havia aqui na Praia de Mira três companhas que davam emprego direto a duzentas e muitas pessoas, onde estavam inseridas alguns destes meninos que iniciavam o seu primeiro trabalho.

Primeiro trabalho mais leve que havia nas companhas, era o de abrir as mangas das redes, (este trabalho era feito por dois meninos) ora as redes como eram todas feitas de fio de algodão, eram muito pesadas, e que dificultava a tarefa tanto do transporte como dentro do barco, era então preciso estendê-las no areal e abri-las no seu todo a fim de secarem bem e se tornarem mais ligeiras, e até para duração do próprio fio, era sem sombra de dúvida o trabalho mais leve.

Foi aqui neste período que a este menino lhe deram o cognome que ainda hoje prevalece aqui nesta linda Praia de Mira que foi o Catraio da Beira-mar, neste período da sua vida nada lhe escapava todo o dia roubava peixe para depois o trocar por alguma fruta começando assim aprender a negociar, para logo matar a fome, e não ter de se deslocar ao seu palheiro quando muitas vezes não encontrava nada para comer, assim passava seus dias só á noite é que aparecia no seu palheiro novamente com mais peixe roubado.

Depois de já ter uma safra a fazer este trabalho, ia para outro mais alto limpar o barco, meter o saco ao ar para que secasse bem e levava os estacões (que eram no mínimo dez paus de dois metros) para a beira-mar para serem utilizados pelos homens para levantar a rede ao chegar á terra, ao outro ano ia colher corda ou amarrar os chicotes dos bois, ressalvo aqui que neste lugar já o menino tinha alguma responsabilidade, daqui saia para carregar as cordas para o barco era um lugar que exigia algum esforço que por vezes se tornava muito duro principalmente quando as redes saiam longe do barco, e alem de carregar as cordas tinha a missão de abrir o saco para que enxugasse bem assim como tinham como compromisso de irem á proa do barco quando este estava para ir ao mar com as varas de madeira para facilitar a entrada no mar mais rápida possível da embarcação, era este um lugar bastante perigoso.

Daqui saia para um lugar no barco a remar, embora não tivesse experiência mas tinha força, e como era a primeira safra a remar seria sempre um lugar de pouca responsabilidade, que esta ia aumentando conforme os lugares que ia ocupando dentro da embarcação.

Aqui já com os seus dezasseis ou até mesmo dezassete já pensava em voos mais alto ou ia para uma traineira onde se ganhava mais alguma coisa, ou então arranjava a maneira de ir ao bacalhau, e deixar todo este currículo para trás ficando apenas as lembranças, que mesmo ausente deste que foi o seu primeiro trabalho, e quando regressava de férias tinha sempre um não

 sei quê de nostalgia que por vezes ainda ia ao mar remando, em lugares que onde tanto remou, como nos seus tempos de menino, e hoje relembra com muita saudade todo o seu percurso desde menino, até ser o homem que foi pela vida fora, e esta é a história verdadeira que muitos e muitos meninos passaram na sua infância, e que têm ainda a possibilidade de contar aos seus netos e filhos como foi a sua infância que hoje ao que se vê parece impassível pelo que se passou, mas foi verdade.

NOTA: Eu conto e afirmo tudo o que está escrito foi uma realidade.

 MANUEL GABRIEL