Câmara de Setúbal afasta técnica alegadamente ligada a Moscovo do acolhimento de refugiados e chama MAI para investigar

A câmara municipal de Setúbal decidiu afastar uma funcionária alegadamente com ligações à Rússia do acolhimento a refugiados ucranianos e pedir investigação do MAI. Decisão surge na sequência da notícia de que estes refugiados estão a ser recebidos na autarquia por russos pró-Putin. A autarquia liderada por André Valente Martins diz também que já tinha pedido esclarecimentos a António Costa sobre denúncias avançadas pela embaixadora da Ucrânia — mas “não obteve resposta” de São Bento.

A câmara municipal de Setúbal decidiu afastar do acolhimento de cidadãos ucranianos a técnica superior que o jornal ‘Expresso’ diz ter ligações a Moscovo. Numa nota enviada ao SAPO24, a autarquia liderada por André Valente Martins (CDU) diz também que “irá solicitar ao Ministério da Administração Interna que adote, de imediato, os necessários procedimentos no sentido de averiguar a veracidade das suspeitas veiculadas pelo jornal ‘Expresso’, manifestando total disponibilidade para prestar toda a informação necessária.”

“Face à situação criada, a Câmara Municipal, retirou do acolhimento de cidadãos ucranianos a técnica superior citada na notícia até ao total e inequívoco esclarecimento desta situação”, escreve a autarquia.

Segundo o semanário, pelo menos 160 refugiados ucranianos foram recebidos por Igor Khashin, antigo presidente da Casa da Rússia e do Conselho de Coordenação dos Compatriotas Russos, e pela mulher, Yulia Khashin, funcionária do município setubalense, no âmbito da Linha de Apoio aos Refugiados da Câmara Municipal de Setúbal, com gabinete no Mercado do Livramento, no centro da cidade.

O jornal diz que Igor Khashin, líder da Associação dos Emigrantes de Leste (Edintsvo), subsidiada desde 2005 até março passado pela câmara de Setúbal, e a mulher terão, alegadamente, fotocopiado documentos de identificação dos refugiados ucranianos no processo de acolhimento e questionado os refugiados sobre os familiares que ficaram na Ucrânia.
A autarquia, todavia, garantiu ao jornal que “nunca foi feita tal pergunta”, que foram “cumpridos todos os requisitos técnicos inerentes a um atendimento social” e que “a recolha de informação é feita com a autorização expressa dos próprios e realizada por dois técnicos superiores”. Além disso, garante, está a ser assegurada a confidencialidade a que a autarquia está “obrigada”.

O jornal ‘Expresso’ refere também que Igor Khashin é um dirigente associativo com dupla nacionalidade, que se apresenta como “gestor de projetos”, e que existiam “referências a si e às suas associações em sites da Ruskyi Mir e da Rossotrudnichestvo”, instituições estatais criadas pelo Kremlin para divulgar a cultura e o mundo russos, mas que, segundo fontes citadas pelo jornal, “podem servir de cobertura a elementos dos serviços secretos” da Rússia.

Na nota enviada ao SAPO24, a autarquia explica que “tem em funcionamento, desde o início da invasão russa da Ucrânia, um serviço de atendimento a refugiados ucranianos e tem prestado todo o apoio necessário ao acolhimento destas pessoas, em direta e permanente articulação com diferentes entidades, nomeadamente a Segurança Social, Alto Comissariado para as Migrações, Instituto de Emprego e Formação Profissional e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.”

“O sr. Igor Kashin, citado na notícia do ‘Expresso’, colabora, regularmente, há vários anos, com várias entidades da administração central, entre as quais o Instituto de Emprego e Formação Profissional, o Alto Comissariado para as Migrações e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, tendo prestado esta colaboração já este ano, em instalações de alguns destes serviços em Setúbal, no contexto do acolhimento de refugiados da guerra da Ucrânia. Esteve também a dar apoio, no contexto das relações existentes, desde 2005, entre a CMS e a EDINSTVO, associação de imigrantes de leste, nos serviços municipais responsáveis pelo acolhimento de refugiados”, acrescenta o município.

“Após tomar conhecimento de afirmações proferidas, há duas semanas, pela Embaixadora da Ucrânia em Portugal relativamente a esta associação, a Câmara Municipal de Setúbal questionou formalmente e no próprio dia, por ofício, o senhor Primeiro-ministro, pedindo que se pronunciasse sobre a veracidade destas declarações e esclarecesse com a maior brevidade possível se o Alto Comissariado para as Migrações mantinha a confiança nesta associação, não tendo obtido resposta até ao momento.”

Numa entrevista à CNN Portugal, a 8 de abril, Inna Ohnivets avisava que há associações com “ligações muito estreitas” com a embaixada russa, temendo que se pudessem apoderar de informações sensíveis dos refugiados ucranianos que chegam ao país.

Dois dias antes, a Associação dos Ucranianos em Portugal enviou uma carta à secretária-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), Maria da Graça Mira Gomes, a denunciar a presença no país de organizações não-governamentais que atuam como agências pró-russas sob a aparência de serem multiculturais. A estrutura alertava ainda que estas ONGs podem estar a recolher dados pessoais dos refugiados.

A câmara municipal de Setúbal diz ainda repudiar “com veemência qualquer toda e qualquer insinuação de quebra de sigilo no tratamento de dados de cidadãos ucranianos acolhidos nos seus serviços”, esclarecendo que “no atendimento que é realizado a estes e a outros cidadãos, como foi explicado ao jornal ‘Expresso’, são cumpridos todos os requisitos técnicos inerentes a um atendimento social”.

“A recolha de informação só é feita com autorização expressa por escrito dos próprios e é realizada por dois técnicos superiores da Câmara Municipal de Setúbal. Trata-se de um procedimento reconhecido e utilizado pelas entidades que, em Portugal, fazem este tipo de trabalho. A informação recolhida serve para instruir os processos de formalização do pedido de acolhimento destes refugiados.”

Contactada pela agência Lusa, a embaixada da Ucrânia em Lisboa afirmou não ter mais nada a acrescentar nesta altura sobre o assunto, indicando que a embaixadora Inna Ohnivets já disse o que sabia.

A diplomata tinha-se manifestado, numa entrevista à CNN Portugal, em 08 de abril, preocupada pela segurança dos refugiados ucranianos porque, alegou, havia “organizações pró-russas” infiltradas no apoio aos refugiados e que “podem receber informação sobre os dados pessoais destes refugiados e dos seus familiares que lutam no exército ucraniano”.

Governo pede esclarecimentos ao Alto Comissariado para as Migrações

A secretária de Estado da Igualdade e Migrações enviou hoje ao Alto Comissariado para as Migrações (ACM) um pedido de esclarecimento na sequência da notícia de que refugiados ucranianos estão a ser recebidos em Setúbal por russos pró-Putin.

Em comunicado, o gabinete da secretária de Estado Sara Guerreira indica que o pedido foi dirigido à alta-comissária, Sónia Pereira, com caráter de urgência.

A secretária de Estado “pediu também esclarecimentos aos parceiros locais do ACM , como a Rede de Centros Locais de apoio à integração de migrantes e associações locais”, acrescenta o comunicado.

Vários partidos já requereram, entretanto, a audição do presidente de câmara municipal de Setúbal na Assembleia da República para esclarecer as notícias.

Associação de Ucranianos: Há pró-russos a receber refugiados em todo o país

Apesar de os dedos estarem agora apontados a Setúbal, a Associação dos Ucranianos em Portugal disse hoje que há “por todo o país” elementos pró-Putin nas organizações que estão a acolher refugiados ucranianos, alertando trata-se de um fenómeno que se repete em toda a Europa.

“Desde que os refugiados começaram a chegar a Portugal, em março, começámos a receber alertas de que tinham sido recebidos por pessoas de elementos pró-russos que se faziam passar por elementos de organizações internacionais e até ucranianas”, contou à Lusa o presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal, Pavlo Sadoka, garantindo que as denúncias chegaram “de norte a sul do país”.

Nestes encontros, os ucranianos acabados de fugir da guerra temiam pela sua segurança assim como dos familiares e amigos que tinham ficado no país, acrescentou Pavlo Sadoka.

A Associação dos Ucranianos em Portugal alertou “há mais de um mês, os serviços secretos portugueses (Serviço de Informações de República Portuguesa) para a presença de agentes infiltrados nas organizações que estavam a dar apoio aos refugiados e a recolher informações sobre as suas famílias”, disse.

“Os russos têm a melhor rede de espionagem de todo o mundo e utilizam todo o tipo de esquemas. Claro que nós não podemos provar, porque não somos nenhuma agência de investigação, mas a História diz-nos que esta é uma situação muito perigosa”, explicou Pavlo Sadoka.

Segundo o representante da Associação, esta situação está a repetir-se por toda a Europa: “A Associação de Ucranianos em Portugal esteve reunida esta semana com outras organizações e vimos que é igual em toda a Europa”.

A Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) considerou hoje que devem ser “cabalmente esclarecidas” as suspeitas de transmissão às autoridades russas de dados confidenciais de refugiados ucranianos em Portugal e pediu às autoridades portuguesas para “agirem em conformidade”.

Em declarações à agência Lusa, o presidente da PAR afirmou que a plataforma teve conhecimento desta situação através da Associação de Ucranianos em Portugal e de outros cidadãos ucranianos residentes em Portugal. André Costa Jorge considerou grave, caso se confirmem as suspeitas, que as associações pró-russas que estão a fazer o acolhimento estejam a pedir informações aos refugiados e a transmiti-las às autoridades da Rússia.

“Entendemos que o Estado português e os organismos próprios devem agir em conformidade. Devem prevenir em primeiro lugar que este tipo de situações aconteçam”, disse o presidente da PAR, defendendo que estas suspeitas sejam “cabalmente esclarecidas”, uma vez que “é grave a utilização de informação para outros interesses e que os refugiados no processo de acolhimento possam estar a passar informações ao governo russo”.

Para André Costa Jorge, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Alto Comissariado para as Migrações (ACM), Ministério dos Negócios Estrangeiros e serviços de informação devem trabalhar no sentido de proteger as pessoas que o país acolhe.

“Qualquer organização que esteja no acolhimento de refugiados, independentemente de ser mais ou menos evidente a sua ligação a qualquer uma das partes, deve garantir que os dados confidenciais não são usados para fins que favorecem o estado russo”, precisou.

O mesmo responsável explicou que preocupa a PAR, enquanto rede de organização de proteção de refugiados, “não apenas a dimensão do acolhimento”, mas também “a cabal segurança de todas as pessoas envolvidas, incluindo as famílias que estão na origem.

“Isto é uma coisa que fazemos há muito tempo em termos de práticas que é sensibilizar as organizações para o cuidado a ter sobre o uso de informação que possa ser prejudicial para os familiares que estão no país de origem. Faz parte das regras do acolhimento não utilizar informação, não expor os refugiados porque isso pode ser usado como retaliação de familiares”, salientou.

O presidente da PAR disse também que o acolhimento de refugiados ucranianos tem sido feito essencialmente por iniciativas cidadãs e, muitas vezes, “não têm em linha de conta essa dimensão” da segurança, já que a preocupação “é tirar as pessoas de uma situação de fragilidade social”.

Pedro Soares Botelho/Madremedia/Lusa