Agosto de 1982. Uma miúda de 15 anos assiste, em Sintra, a um concerto dos UHF, e fixa-se no vocalista, António Manuel Ribeiro. 21 anos depois, começa a persegui-lo, envia-lhe milhares de mensagens e e-mails, cria sete heterónimos e usa outros tantos números de telemóvel, faz telefonemas constantes, cobre-lhe o carro de flores roxas, aterroriza todas as mulheres que lhe são próximas, guia em contramão para lhe barrar o caminho, conhece todos os seus passos, as viagens, os quartos de hotel e, num mesmo dia, é capaz de lhe declarar o seu amor eterno, insultá-lo e ameaçá-lo.
Este ‘inferno’, nas palavras do próprio António Manuel Ribeiro, que durou nove anos e deu origem a três julgamentos e a episódios insólitos no sistema judicial, foi o mote para o livro «És meu, disse ela», escrito pela jornalista Carolina Reis, e para a conversa da segunda sessão de fevereiro das 5as de Leitura. O Presidente da Autarquia, João Ataíde, e o agente turístico Nuno Furet, conduziram a conversa, que contou ainda com a participação do advogado do cantor, José Gomes Fernandes.
No Auditório Municipal, António Manuel Ribeiro, falou de stalking, um crime que só em 2005 foi autonomizado no nosso ordenamento jurídico penal. «Antes deste caso, as mulheres tinham medo e os homens vergonha de denunciar casos de stalking», afirmou. Atualmente, com o número de denúncias a aumentar, confirma-se que, na maior parte dos casos, o stalking acontece entre duas pessoas que tiveram uma relação, cujo fim uma quis e a outra não aceita. «Não foi o meu caso», sublinhou o cantor que agradeceu «aos pais a educação recebida», que o impediu de reagir com violência a todas as agressões sofridas ao longo de quase uma década. «Este livro não pretende ser um novo julgamento, nem uma ‘vendetta’», garantiu. «Escrevi-o para me libertar mas editei-o para ajudar outras pessoas, para que denunciem se forem vítimas, porque ocultar os factos favorece o agressor e mantém a vítima à sua mercê», acrescentou, «para saberem também como identificar os sinais, distinguir o que é um ato amoroso de uma obsessão que interfere na liberdade do outro, para que saibam, ainda, o que esperar do sistema judicial. É um manual de sobrevivência ao stalking, com valor pedagógico», resumiu, desejando que a sociedade caminhe «para uma modernidade com sanidade mental», com «menos espaço para sociopatias» e, também, que a justiça «funcione sem reservas e em tempo útil». No caso de António Manuel Ribeiro, a agressora foi condenada a dois anos de pena suspensa e ao pagamento de uma indemnização que ainda está por cumprir porque, «apesar de durante o processo ter trocado de carro três vezes, está indigente», criticou.
«O Direito funciona por reação», afirmou o presidente da Autarquia, João Ataíde, destacando a importância da criação de jurisprudência e da reflexão e debate públicos em situações que são, muitas vezes, fruto de novas realidades e novas ferramentas tecnológicas.
O serão chegou ao fim após um período de debate e a habitual sessão de autógrafos.
A próxima sessão das 5as de Leitura é especial e acontece a 29 de Março, assinalando o Dia Mundial da Poesia com a peça «Nome:Natália» e uma tertúlia sobre a poeta Natália Correia com a presença de Fernando Dacosta. A entrada será, como sempre, livre.