Anestesiologia, obstetrícia e cirurgia geral são especialidades em que se pagam 50 euros/hora a prestadores de serviços
O Centro Hospitalar Universitário do Algarve está a pagar quase o dobro do que prevê a lei em prestações de serviços para garantir médicos, em especial no verão. Ortopedia, Anestesiologia, Ginecologia/Obstetrícia, Cirurgia Geral, estas são algumas das especialidades mais carenciadas nos hospitais da zona sul e onde os valores pagos aos tarefeiros batem nos 50 euros por hora, bem acima do que está tabelado e do que ganha, por exemplo, um médico do quadro no topo da carreira.
A Ordem relata mesmo casos de profissionais do resto do país que põem férias nesta altura do ano para trabalhar no Algarve, onde ganham mais.
As leis que regulam esta área sucedem-se e são muito claras, sempre com o objetivo assumido pelo governo de reduzir a fatura com as prestações de serviços na saúde, que em 2016 chegou aos 100 milhões de euros. Desde logo, o decreto de execução orçamental, publicado há menos de um mês, determina no artigo 58º que “durante o ano de 2018, o valor máximo por hora de trabalho a pagar pela aquisição de serviços médicos não pode, em caso algum, ser superior ao valor hora mais elevado previsto na tabela remuneratória aplicável aos trabalhadores integrados na carreira médica ou especial médica“.
E também já este ano, em Março, um outro despacho (3027/2018) definiu as orientações gerais para a celebração ou renovação de contratos em regime de prestação de serviços de pessoal médico, em que estabeleceu os valores/hora de referência: 22 euros para os médicos não especialistas; 26 euros para os médicos especialistas, que podem ir até aos 29,21 em zonas carenciadas, como é o caso do Algarve – que repetidamente tem falta de candidatos para as vagas que abre nos seus serviços de saúde e que vê a sua população duplicar nesta altura do ano.
Mas o que teria por lei de ser excecional e transitório transformou-se em regra e anual. No caso do Algarve, estes valores “são justificados e autorizados tendo em conta a reconhecida carência de profissionais de saúde para áreas vitais e cruciais para continuar a assegurar a prestação de cuidados de saúde”, responde ao DN o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA, onde se incluem os hospitais de Faro e Portimão), que reconhece não ter “o número desejado de profissionais de saúde no quadro, tendo por isso, como muitos hospitais nacionais, que recorrer à contratação externa de serviços médicos”.
Explicações reforçadas pelo presidente da Administração Regional de Saúde do Algarve, que em entrevista ao DN admite um problema em algumas especialidades nas urgências, que no sul resulta do facto de muitos médicos, “quando acabam a especialidade, ao perceberem que há mercado nesta zona, nem sequer quererem entrar na função pública, porque é mais rentável ficarem como freelancers“.
Argumentos rebatidos por médicos da casa, que contra-atacam com um estudo apresentado pelos profissionais que concluiu que o centro hospitalar poupava 500 mil euros por ano em contratos se pagasse mais aos médicos do quadro. “Mas andam a pagar 50 euros em várias especialidades, contratados que ganham duas ou três vezes mais do que os médicos do quadro que fazem a mesma coisa. Andamos a fazer figura de parvos, e os que decidem deixar de ser parvos saem para o privado ou passam a fazer o mesmo que os prestadores de serviços fazem, a ganhar 50 euros por hora”, critica um especialista do CHUA.
Pôr férias para trabalhar 24 horas
“Com ordenados miseráveis, é normal que muitos médicos aproveitem estas alturas para ganhar um pouco melhor”. Guida da Ponte, dirigente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul (FNAM), reconhece que as situações em que se paga muito acima do que está previsto na lei passaram de “exceção a norma”, resultado de “condições miseráveis de trabalho” que não conseguem seduzir profissionais para zonas como o Algarve. E se a sindicalista se mostra compreensiva com os médicos que aproveitam as prestações de serviços, lembra também que “os contratos são feitos com empresas, portanto dos 50 euros pagos por hora, só uma parte vai para os profissionais”. No entanto, se isso acontece em muitos casos, outros há em que o valor total vai para uma única pessoa.
Ao analisar os contratos para este ano no CHUA publicados no portal Base, há mais do que um caso de prestações assinadas com empresas unipessoais. Um desses exemplos diz respeito à contratação de uma anestesista, que tem uma empresa com o seu nome sedeada em Faro, que até final do ano vai ganhar um valor total de 62 400 euros – 50 euros à hora. Quanto aos horários, os documentos impõem cláusulas específicas para os períodos entre 1 de julho e 15 de setembro e para a altura do Natal e Ano Novo. No caso da anestesiologia, determina um mínimo de 24 horas semanais. Mas fontes ouvidas pelo DN relatam situações de outros prestadores de serviços que trabalham 24 horas… de uma só vez.
“Há médicos de Lisboa e Porto que metem férias e folgas no verão para trabalhar uma semana no Algarve, onde ganham mais. Pagam viagem de avião, estadia, além do normal valor/hora, por trabalhos contínuos. Há turnos de 24 horas, com 12 de descanso, mais 24 horas, e outras 12 de descanso”, conta o presidente da secção Sul da Ordem dos Médicos. Alexandre Valentim Lourenço elenca algumas da razões para os problemas crónicos na saúde da região: Todos os anos, a população no Algarve duplica no verão, a que se junta o facto de terem “partido as urgências em dois”, com maior necessidade de profissionais.
“Mas não há elasticidade nas contratações. A solução passa por um quadro de pessoal maior, que seja ajustável, para que nas alturas de menos procura fora do verão os profissionais não estejam parados”, defende o dirigente da Ordem. E passa também, acrescenta o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, por incentivos financeiros e sociais – “por exemplo, pela garantia de trabalho para as famílias” – para levar os médicos para estas zonas carenciadas.
DN