Uma troca de acusações sérias: um documento de oito membros da Academia Católica de França critica severamente o relatório sobre os abusos sexuais. Os bispos e o presidente da Comissão que o elaboraram respondem dizendo que as críticas são ocas e que as vítimas de abuso foram de novo atingidas. Um tremblement no catolicismo gaulês, uma crise que se agrava.
Um grupo de intelectuais católicos de diferentes áreas disciplinares critica e propõe-se descredibilizar o relatório da Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja (CIASE, da sigla em francês), publicado no início de outubro. Os autores são membros da Academia Católica de França (ACF), à qual pertenciam também o presidente da Conferência Episcopal de França (CEF) e a presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas (Corref), que já se demitiram desta instituição.
São oito os autores do documento que questiona a credibilidade do Relatório CIASE. Entre eles, estão vários membros da direção da ACF, ainda que esclareçam que o documento produzido não vincula a Academia. O resultado – provisório, visto que a análise a que procederam vai continuar – foi enviado às entidades que encomendaram o Relatório e ao núncio apostólico para o fazer chegar ao Papa.
No texto de 15 páginas, os autores dedicam um parágrafo a contextualizar a importância de o estudo ter sido solicitado pelos bispos e pelas ordens religiosas (foi “sensato” fazê-lo, referem), para logo concluírem que, “apesar do seu volume”, ele “só muito parcialmente preenche” o que lhe foi solicitado, “de que aliás se afasta de modo perturbador”. A partir daí esgrime argumentos estruturados em três capítulos: a dimensão factual e estatística, a dimensão teológica e filosófica, e a jurídica e financeira.
Relativamente aos procedimentos metodológicos e às estatísticas, os autores apontam contradições de resultados entre diferentes processos de recolha e extrapolações problemáticas de dados. Insurgem-se, sobretudo, com o número de mais de 300 mil vítimas de abusos nos setenta anos apontados pela CIASE como estimativa.
O documento dos membros da ACF aponta, depois, lacunas, limitações e falhas na vertente doutrinal, aventando a possibilidade de isso se ficar a dever à “falta de especialistas” em eclesiologia, exegese e teologia moral.
Em termos gerais, os membros da Academia Católica criticam a CIASE, que foi presidida pelo magistrado Jean-Marc Sauvé, curiosamente também ele membro daquela Academia, por ter adotado uma periodização que terá levado a subestimar o trabalho de erradicação dos abusos, empreendido pela Igreja Católica.
As “limitações mais graves” do Relatório CIASE, porém, entendem os críticos, “além de uma metodologia defeituosa e contraditória e de carências graves nos domínios teológico, filosófico e jurídico, dizem respeito às recomendações”.
A “gravidade” dessa parte reside no facto de o Relatório se colocar no papel de guia da ação da Igreja e dos seus fiéis, sem que a Comissão tenha autoridade eclesial ou civil para o fazer. “Algumas delas poderiam vir a revelar-se ruinosas para a Igreja”, porquanto poderiam abrir um cenário de “multiplicação de procedimentos desencadeados por falsas vítimas, em detrimento de pessoas que foram realmente vítimas de predadores”. Além disso, há recomendações que “põem em causa a natureza espiritual e sagrada da Igreja, que não é uma simples associação laica temporal, bem como do seu clero e dos seus sacramentos”, acrescentam.
Uma crise que se afunda
O texto dos oito da Academia provocou nos últimos dias um conjunto de reações. Mas o contexto em que o documento aparece não podia ser pior. De tal modo que a revista Le Point observava, na notícia sobre o tema, que “o catolicismo francês não para de se afundar na crise.”
E se se tiver em conta que o catolicismo francês foi, no século XX, o alfobre de grandes vultos do pensamento teológico, de inovações pastorais, de criatividade litúrgica e de diálogo ecuménico e cultural, tornando-se referência para muitas outras realidades, teremos a noção da verdadeira dimensão desta crise.
A reação mais importante ao documento crítico da Academia veio do presidente da CEF, o bispo Moulins-Beaufort. Rejeitando os argumentos dos críticos, escreve ele, num artigo no jornal La Croix: “Nós, bispos, recebemos as conclusões da CIASE pelo que são: um trabalho que devemos levar a sério e que aponta para possíveis caminhos de renovação para a nossa Igreja.”
Vários comentários surgidos na imprensa relacionaram entretanto o aparecimento deste documento com o adiamento da reunião que o Papa convocara com Jean-Marc Sauvé. O presidente da CEF diz também sentir-se desapontado com a prorrogação, mas considera suficiente a explicação da Casa Pontifícia: o Papa chega, na véspera, da sua viagem à Grécia, Chipre e Malta, onde não estará como “turista e, na sua velhice”, o que se deve desejar é “que Deus o deixe lúcido, ativo e exigente para com todos durante muito tempo” – mesmo no sentido de serem as vítimas a “guiar” as escolhas dos líderes católicos.
Os atos de violência e agressão contra os menores são “em número demasiado elevado para que possamos considerar isto um fenómeno marginal”, defende o presidente da CEF. Moulins-Beaufort refere a “incapacidade global do corpo eclesial ou da sociedade eclesial” em detetar, compreender e denunciar o mal dos abusos e a “falha da instituição em ouvir, em acompanhar, em proteger os mais pequenos e vulneráveis”.
Os bispos escolheram “servir a vida” ao criarem a comissão para o Reconhecimento e Reparação, diz. E isso abriu “um futuro, um caminho exigente mas desejável de verdade, compaixão, atenção mútua” que, além do mais, responde também ao apelo do Papa em “implementar resolutamente a dimensão sinodal que é consubstancial à Igreja”.
“Um insulto às vítimas”
Numa entrevista também ao La Croix, Jean-Marc Sauvé diz que esperava “ataques ao relatório”, mas pensava que eles surgiriam “mais cedo e muito fortes, especialmente dos círculos tradicionalistas”. Vindo da Academia Católica, diz sentir “tristeza” por ele próprio integrar a Academia.
A imprensa tem dado conta de que o relatório Sauvé mereceu reparos também de alguns bispos. Mas, perante a pressão dos seus pares, eles calaram essas críticas e assumiram o plano da CEF para o futuro próximo.
Em última instância, diz Sauvé, o documento pretende, no fundo, evitar que a Igreja entre num processo de “dolorosas compensações e reformas necessárias e profundas”. E acusa: “Os signatários deste texto insinuam que a CIASE se move por uma agenda ideológica, invertendo e distorcendo completamente as coisas.” A Igreja acaba por ser a “primeira vítima” do ataque, “apesar de ter tomado decisões corajosas ao criar a CIASE, dando-lhe total liberdade, e depois tomar decisões sem precedentes em novembro” – uma referência à resolução de criar o mecanismo para o Reconhecimento e Reparação das vítimas.
O magistrado considera ainda que “a segunda vítima são as pessoas que foram agredidas sexualmente” e a “terceira vítima é o serviço da verdade e, em última análise, a própria Academia Católica, que enfrenta uma onda de demissões sem precedentes e está a fazer tudo o que pode para se tornar um pequeno grupo”.
Nada no documento põe em causa a análise da CIASE, considera Sauvé, nem a opinião dos seus membros, “que esperavam resultados diferentes do inquérito geral à população – ou seja, um menor número de vítimas”. O presidente da comissão acrescenta que fala de si próprio em primeiro lugar: “É preciso ter a humildade de reconhecer factos que não se esperam e de que não se gosta.”
Outra reação é a do comentador e jurista católico Erwan Le Morhedec – o primeiro, aliás, a dar notícia das demissões na Academia na sua página na rede Twitter.
“Os bispos colocaram todas as primeiras pedras de um caminho de reconstrução, tanto para as vítimas como para a Igreja. Falta tomá-lo e fortificá-lo”, escreve o cronista na sua coluna no semanário La Vie.
“Alguns dos fiéis não se consideram responsáveis. Eu digo que não somos legalmente responsáveis, estamos fraternalmente empenhados”, acrescentava Le Morhedec na sua página do Twitter. “Como advogado e como católico, lamento ver que o documento da ACF se alimenta de um legalismo frio.”
7 margens/Madremedia