“Hoje, devido à pandemia, vivemos tempos inéditos. Estamos a sentir um abalo na esfera da saúde e em termos sócios-económicos que não se via há já cem anos. Isto é, desde os tempos da “Gripe Espanhola” – que eclodiu durante a Primeira Guerra Mundial e que, por cá, ceifou inúmeras vidas – entre as quais a do maestro da Pocariça – António Lima Fragoso.
Ora, nestes tempos em que o pulsar da nossa vida é cada vez mais determinado pelas ferramentas digitais com que nos rodeamos, a singularidade dos nossos dias não fica “só” pelo impacto do Covid19. Aliás, nesta vida “vivida nos media e com os media” (Deuze, 2012), estranho seria que, em tempos de confinamento, não ocorresse uma presença de conteúdos produzidos pelos próprios consumidores. Afinal, infelizmente, tempo e meios não faltam. É a era da materialização do conceito do “Prosumer”, criado por Alvin Tofler em 1995, que determina que cada um de nós pode ser simultaneamente produtor e consumidor de conteúdos. E hoje, com muito pouco investimento, é possível a qualquer um de nós munir-nos com dispositivos digitais para produzir, consumir e emitir conteúdos, à escala global, mesmo estando em contextos locais – é o resultado da reterritorialização da “glocalização” contemporânea. Chegou-se assim à era do “self media”.
Quando se fala deste conceito, está-se a abordar uma ecologia mediática composta por espaços individuais (contas) que promovem conteúdos, de uma forma puramente participativa, mas que não cumprem com as normas e procedimentos que norteiam as práticas profissionais. São contas pessoais que essencialmente promovem conteúdos, da mais diversa ordem, através de redes sociais, blogs, páginas etc. Está-se perante uma realidade crescente que resulta diretamente da vontade e principalmente das intenções do consumidor que hoje mapeia cada vez mais a ecologia digital da “Internet”. Ou não fosse impossível ao homem não comunicar. Trata-se de uma evolução do conceito da “era de emerec”, da autoria de Jean Cloutier – que, na década 70, do século passado, preconizou a existência de um homem consumidor e produtor de conteúdos.
Estes voluntariosos também tem a possibilidade de produzir ou reproduzir informação. Mas não são “media outlets”. No entanto, neste caso, a ampliação destes espaços amadores, pode ter efeitos devastadores – nomeadamente na promoção da desinformação. Veja-se os inúmeros exemplos relativos ao Covid19 que surgem de uma foram quase incessante. Vão desde os simples chás milagrosos que curam esta maleita, até à negação da existência do próprio vírus.
A grande verdade é que, neste momento, vivemos duas pandemias – a que resulta do vírus (pandemia) propriamente dito, e a que é causada pela desinformação (infodemia). E neste momento em que a nossa essência, enquanto seres sociais que somos, está agrilhoada a essa prisão domiciliária que é o confinamento, estamos todos à mercê dos resultados destes pseudo-comunicadores que, em muitos casos, só lançam o caos e à falta de educação para os média – algo que, há já muito tempo, devia fazer parte do currículo escolar. No entanto, tal não ocorreu. Quiçá, às tantas, não interessa, a quem governa, ter uma população que saiba estar devidamente informada e talvez muito menos, ao “media outlets” uma que consiga distinguir o valor noticioso de algo que se quer passar como “notícia”… Já viram o que seria o público pensar que seguir um autocarro, em direto, desde o Jamor até Vila do Conde, por exemplo, não é notícia? Ou concluir que – o fato de uma figura de um “reality show” mudar o penteado não tem valor informativo! Se fosse assim, como é que se preenchiam as grelhas informativas?
Por isso, compreende-se que hoje o papel das redes sociais nos processos de circulação e difusão de notícias é dos mais expressivos na dieta noticiosa nacional – cerca de 18% da população nacional considera estes espaços como sendo a sua fonte noticiosa de eleição (ERC, 2014). E quando se têm os líderes de audiência que temos – onde impera o “infotainment” (conteúdos que misturam informação com entretimento), para mim, trata-se de uma tendência muito preocupante! É o predomínio do sensacionalismo e do jornalismo de “faca e alguidar”!
Serão as redes sociais a maior máquina de propaganda da história?
Sacha Baron Cohen
Veja-se, por exemplo, o impacto que o discurso de ódio publicado, em “posts”, nas contas do “Facebook” e do “Instagram” têm em países como Myanmar. Ou os ataques aos poderes legitimamente eleitos que têm resultado, por exemplo, na imposição dos “ismos” como uma verdadeira ameaça à nossa democracia. Vemos os seus líderes a munirem-se de teorias da conspiração, para se auto promoverem. E em Cantanhede, tal como ocorreu numa parte considerável do país, a eficácia da sua máquina de propaganda está aos olhos de todos – basta olhar para as últimas presidenciais para aferir este pressuposto.
Porém, para além disto, ao invocar a cultura participativa, previamente enunciada, em Cantanhede, desde março, do ano passado, é possível assistir nas redes sociais a uma presença avassaladora de especialistas do Covid19. Nunca imaginei que houvesse tantos epidemiologistas por terras do marquês. Aliás, pode dizer-se que os treinadores de bancada, da nossa urbe, foram substituídos por um verdadeiro tsunami destes especialistas… Isto, para não falar dos “polícias do Covid” – uma nova profissão, completamente voluntária, que tem como missão identificar e denunciar alto e em bom som – preferencialmente num espaço público (como numa loja) – quem tenha a ousadia de não cumprir com as normas da DGS no que concerne ao uso da máscara e ao distanciamento social. Parecem o VAR a ver se a máscara desceu, nem que seja um centímetro, no nariz do visado. Quais Kapos de 1939 – 1945, qual quê…
Ainda neste contexto pandémico, assiste-se à presença de um jornalismo do cidadão – que é apenas e somente um exercício faz de conta. É uma fantasia da autoria de curiosos dos média nas redes sociais. Aliás, já abordei este assunto no passado. Estes comunicadores são indivíduos que, também de uma forma voluntária – embora, quiçá pretendam o contrário – tomaram como missão criar agregadores de notícias em que, por vezes, através de um pequeno texto, da sua autoria, conseguem enviesar o sentido da notícia que estão a partilhar. Ora, como não há jornalismo do cidadão, isto não é comunicação! É apenas um momento de “self media”… É uma mera opinião. No entanto, lança confusão e pode manipular a edificação de uma opinião pública que se quer saudável e atenta.
Esta confusão ocorre no público porque por um lado, estes agregadores têm uma aparência que os faz passar por um meio oficial. E, por outro, vivemos todos numa era em que o consumo de informação é imediato. Hoje, quase tudo é “breaking news”. Não há tempo, ou, em muitos casos, paciência para consumir conteúdos com um nível de profundidade que obrigue à reflexão. A verdade é que não se para para pensar. Aliás, não é ao acaso, que para combater o domínio deste paradigma e dos perigos que lhe são inerentes já há espaços e movimentos que defendem um consumo mediático mais pensado e lento (http://en.slow-media.net/manifesto). No entanto, deixo uma questão – será que há assim tanta novidade? Às vezes, enquanto consumidores, temos de refletir acerca da nossa dieta informativa. E na esfera noticiosa nem tudo é mentira; no entanto, nem tudo é verdade… Longe vão os tempos da dimensão contemplativa que pautava a prática e a interpretação jornalística. Hoje, é uma prática de instrução apressada…
Ao levar esta linha de pensamento para o papel das instituições públicas, pode ver-se, por exemplo, que existem edilidades que, nos seus espaços de comunicação que são pagos pelo erário público, omitem as posições de outras forças políticas. Criam incessantemente metanarrativas que visam promover quem está no poder dando-lhe uma presença quase divina. E o pior e o que mais me custa assistir é que nas redes sociais não há quem falte a criticar este estado de coisas. No entanto, ele mantém-se…
É, portanto, algo endémico. Está na epiderme. Acerca deste propósito, recordo-me de uma senhora, já idosa, que numas eleições legislativas à boca da urna na Escola Primária Conde Ferreira, em Cantanhede, me perguntou: “é nesta folha que voto no PSD?” Nem tudo na vida é para compreender, há coisas que são apenas para se assistir.
Em suma, termino destacando outros fenómenos de “self media”, que têm ocorrido em terras do marquês. Estes vão desde vídeos (“Tik Tok”) a emissões em “streaming” de: cerimónias religiosas, crochet, vendas de roupas e miudezas (meias e roupa interior), tupperware, talkshows, sessões de culinária, “webinars” da mais diversa ordem e, por fim, até concertos “30 minutos de música” que inauguraram desastrosamente em versão “screaming”, e não “streaming”, da autoria da edilidade local… Perante tanto jeito, palavras para quê…”
Luís Miguel Pato
Profissional e docente em Ciências da Comunicação