Vítima ser a única testemunha anula prisão por violência doméstica

Neto de Moura foi um dos juízes da Relação do Porto que decidiram invalidar este julgamento em processo abreviado. Foi considerado que há apenas um testemunho presencial, o da vítima, e faltam “provas simples e evidentes”

Um homem condenado a três anos e quatro meses de prisão pelos crimes de violência doméstica e de ofensa à integridade física cometidos sobre a companheira irá voltar a ser acusado e julgado após a sentença de primeira instância em processo abreviado ter sido anulada pelo Tribunal da Relação do Porto, em 11 de abril. O juiz Neto de Moura, que é alvo de um processo disciplinar devido a acórdão de 2017 relativo a um caso de violência doméstica, foi um dos desembargadores.

O arguido deste processo já tinha sido condenado em 2012 no tribunal de Matosinhos, por um crime de violência doméstica contra menores, a uma pena suspensa de dois anos e meio de prisão, sentença já transitada em julgado. Os dois desembargadores – o relator foi Lígia Figueiredo – consideraram que o julgamento em processo abreviado não era admissível. O processo abreviado é uma das formas especiais de processo penal e caracteriza-se pela redução de prazos e pela supressão de certas fases processuais. É o Ministério Público que pode requerer esta forma nos casos em que “o crime seja punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos e houver provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente”.

Neste processo que correu no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia foi seguida esta forma de julgamento, de modo indevido, aponta a Relação do Porto. ” Não se pode ter como verificado o pressuposto processual relativo à aplicação do processo abreviado relativamente à existência de provas simples e evidentes, quando tendo presente os depoimentos das sete testemunhas, o lapso temporal de cinco anos e a circunstância de os factos terem ocorrido, grande parte no interior da casa de morada de família, e inclusive no quarto e na cama do casal, quando não existem testemunhas presenciais, além da ofendida, em relação a todos factos concretos imputados ao arguido, não transmitindo por isso uma visão uniforme dos acontecimentos”, apontam os juízes, concluindo: “O uso da forma de processo abreviado não era admissível e a sua utilização integra a nulidade insanável (…), que torna inválida a acusação e os atos posteriores, designadamente o julgamento e a sentença.”

Para os desembargadores, “não existem testemunhas presenciais, além da ofendida, em relação a todos os concretos factos imputados”. Mas admitem que tal “raramente ocorrerá em crimes de violência doméstica”. Como o processo abreviado está “direcionado para casos de pequena criminalidade e de prova inequívoca ou evidente”, este caso não deveria seguir por essa forma por não existirem “provas simples e evidentes”.

Socos e pontapés

O caso reporta a um casal que vivia em união de facto desde 2011, com duas crianças. Ficou dado como provado no julgamento que, em 2012, o homem pressionou a mulher para ter relações sexuais quando esta estava grávida e a ameaçou. Na discussão, e depois de a mulher “lhe ter chamado corno, o arguido desferiu-lhe um soco na face, originando-lhe um hematoma visível”. Entre outros episódios de violência verbal e física, consta da sentença que “em 2015, no decurso do último trimestre de gravidez de C., na casa de ambos, na sequência de uma discussão e depois de C. o ter empurrado com força, o arguido desferiu-lhe um pontapé nas costas, atingindo-a na zona dos rins e provocando a sua queda para cima do filho, que se encontrava deitado na cama”.

A mulher saiu de casa em maio de 2017, mas o homem tentou por diversas vezes reatar a relação. Foi detido em junho de 2017 e ficou em liberdade com pulseira eletrónica, proibido de se aproximar da vítima. O que desrespeitou, tendo esperado a mulher que saía de um restaurante com um amigo para a abordar, enviado sms e feito telefonemas. Com a sentença invalidada, tal como a acusação, o processo segue para o MP para formulação de nova acusação.

Processo disciplinar: testemunhas ouvidas

O processo disciplinar que foi instaurado pelo Conselho Superior de Magistratura ao juiz desembargador Neto de Moura está em fase de audição de testemunhas. Depois de ter sido iniciado em dezembro, o juiz recebeu a nota de culpa e a sua defesa entregou uma contestação aos factos imputados que indiciam a violação de deveres de correção e de prossecução de interesse público. As testemunhas começaram a ser ouvidas na segunda-feira, pelo que não estará para breve a conclusão do processo em que a juíza Maria Luísa Arantes é também visada por violação do dever de zelo. Em causa um acórdão da Relação do Porto sobre um caso de violência doméstica em que Neto de Moura cita a Bíblia e o antigo Código Penal para diminuir a mulher adúltera.

DN