Uma criança foi assassinada e as insinuações da extrema-direita obrigaram o Governo alemão a montar um gabinete de crise

Ministro da Administração interna admite que “o país está polarizado”

Num país crispado, onde a presença de estrangeiros divide opiniões e alimenta conflitos, até um crime já por si horrível pode tornar-se algo mais. É o caso de um homicídio na Alemanha, que de repente se tornou bandeira para defender princípios xenófobos: um menino de oito anos morreu atropelado por um comboio de alta velocidade na estação central de comboios em Frankfurt, depois de ter sido empurrado para os trilhos por um homem de 40 anos de origem eritreia.

Aconteceu segunda-feira, ao início da manhã, e também a mãe da criança e uma outra mulher, de 78 anos, foram empurradas. As duas escaparam. O suspeito fugiu, mas graças à intervenção de algumas testemunhas acabou detido pela polícia.

Entre a comoção e o ódio, o caso tornou-se um fósforo num ambiente social à beira do incêndio – a ponto de o ministro da Administração Interna, Horst Seehofer, ter interrompido as suas férias e convocado um gabinete de crise em Berlim. Esta quarta-feira partilhou alguns dos dados apurados pelos investigadores para classificar o ocorrido como “um assassinato a sangue frio”, mas também para pedir contenção, condenando os comentários assumidos pela extrema-direita, que não perderam tempo a usar o crime como arma política.

“O país está polarizado”, disse Horst Seehofer, e apesar de os níveis reais de criminalidade estarem baixos, acrescentou, “o sentimento de segurança na população está agora muito afetado”. Medidas rigorosas devem ser tomadas contra os criminosos, defendeu Seehofer, mas sublinhando que “não podemos permitir nem a exploração nem a minimização de crimes por imigrantes”.

Sendo desde logo dado como certo que não existia qualquer ligação entre o suspeito e as vítimas, as notícias foram acompanhando as pistas e os factos: Habte Araya, pai de três filhos, chegou à Suiça em 2006 e obteve asilo dois anos depois. A polícia referiu-se ao seu percurso como “um exemplo de integração”, pelo menos até janeiro deste ano, enquanto manteve um emprego fixo. Disse também que desde a semana passada era procurado pelas autoridades de Zurique por ter fechado em casa a sua família e por ter ameaçado uma vizinha com uma faca. Da Suiça chegaram informações de que estava a receber tratamento psiquiátrico, sem qualquer indicação que apontasse para ter praticado o crime por razões ideológicas. Também não foram encontrados nas análises efetuadas após a sua detenção quaisquer vestígios de álcool ou de droga.

Vários crimes envolvendo estrangeiros

O ministro do Interior viria a afirmar que o homem terá entrado legalmente na Alemanha, esclarecendo que Habte Araya deverá ser acusado de homicídio da criança de oito anos e de duas tentativas de homicídio – a mãe da criança e a idosa. Em caso de condenação, arrisca uma pena de prisão perpétua.

Estes são os factos. Que no discurso dos políticos do partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD) foram ‘selecionados’, passando o enfoque a ser dado ao facto de o suspeito ser um eritreu e um homem fugido da polícia na vizinha Suíça.

Sendo este o mais recente de uma série de crimes mediáticos perpetrados por cidadãos não alemães – incluindo a violação coletiva por jovens búlgaros de uma jovem de 18 anos em Müllheim, no Vale do Ruhr – a AfD continua a considerar ter argumentos para atacar a política de “portas abertas” seguida pela chanceler Angela Merkel, posição que a elevou à categoria de principal partido da oposição.

Em sentido contrário, mas igualmente foco de tensões, surgem os crimes atribuídos à extrema-direita, com o incidente mais proeminente nos últimos meses a ser o assassinato, cometido por um simpatizante neonazi, do político da União Democrata Cristã Walter Lübcke, conhecido por defender uma linha pró-refugiados.

A divisão de sentimentos em relação ao caso do menino atropelado já obrigou a polícia a intervir. Desde segunda-feira os transeuntes têm colocado flores, brinquedos e chocolates na plataforma sete, onde a criança morreu. Centenas de pessoas reuniram-se na estação na noite de terça-feira para uma cerimónia religiosa para homenagear o menino e dar apoio à sua família. Agentes separam cerca de 50 manifestantes de extrema-direita do resto da multidão, incluindo uma mulher que segurava uma faixa que dizia “esta política está a matar o povo”. Um homem ligado a um grupo de esquerda gritou-lhe “ele deveria tê-la empurrado a si para a frente do comboio”, conta o “The Guardian”.

Mafalda Ganhão / Expresso

Foto: © ARMANDO BABANI/EPA