Os três dias que abalaram o Facebook

A rede social e a Cambridge Analytica (CA) estão envoltas em polémica após um ex-funcionário da empresa britânica ter explicado como esta se apropriou de milhões de perfis do Facebook e os usou para campanhas eleitorais, nomeadamente na eleição de Donald Trump.

Christopher Wylie assume ter sido a mente por detrás das “operações de informação” para juntar enormes quantidades de dados e as redes sociais, como explicou ao The Guadian. Entre outras, estas operações afectaram o referendo ao Brexit no Reino Unido ou as eleições norte-americanas que levaram à vitória de Trump.

A ideia passou por agregar perfis de 50 milhões de utilizadores (principalmente dos EUA) do Facebook e usar esses dados pessoais para criar “sofisticados perfis psicológicos e políticos”, a quem seria depois entregue publicidade partidária específica.

A ideia não era nova. Em 2013, no evento MicroStrategy World, em Barcelona, o então Business Systems Manager do Facebook, Daniel Soosai, explicou como era possível agregar dados de redes sociais a programas de analítica para marcas, com localização específica. Por exemplo, quem fizesse “likes” à Pepsi poderia ter publicidade direccionada da Coca-Cola.

Soosai afirmou que o não faziam, que não havia identificação pessoal mas apenas grupos com um “mínimo de 10 mil pessoas” e apesar de ser possível tecnicamente analisar marcas ao nível de uma rua (sobrepondo dados de geolocalização), isso também não era feito. Mas era possível, quando o projecto ainda só estava “1% completo”.

Por outro lado, há muito que o Facebook cede perfis agregados para investigação científica – como sucedeu com os psicólogos Michal Kosinski e David Stillwell, na Cambridge University. Stillwell começou a analisar o perfil psicológico de utilizadores do Facebook com pequenas aplicações de inquéritos de personalidade e descobriu, por exemplo, que quem fazia “like” à expressão “I hate Israel” tendia a gostar de ténis Nike e de chocolates KitKat.

Naturalmente, as agências de segurança e de defesa repararam nestas análises – tanto que a Boeing e a Defense Advanced Research Projects Agency norte-americana financiaram a investigação posterior de Kosinski. E Wylie também se interessou.

Nada de errado com 30 milhões

Tudo começou em 2013, quando conheceu Steve Bannon, então responsável do Breitbart News e que se tornou depois estratega de Donald Trump, até ser afastado da Casa Branca em agosto passado.

Para conseguirem eficácia política no Facebook, era necessário obterem dados dos utilizadores. Kosinski não os cedeu, mas Aleksandr Kogan, da Global Science Research (GSR) e também professor na Cambridge University, assumiu que podia replicá-los e assim o fez, através de um novo teste de personalidade, que foi usado por 270 mil pessoas, segundo dados do Facebook.

Apesar de só poder usar dados da rede social para investigação científica, Kogan terá entregue esses dados à Cambridge Analytica (CA), empresa com dois departamentos para tratar de marketing comercial e de política. Os dados foram usados na campanha do candidato republicano Ted Cruz, a CA foi denunciada, mas avançou para a campanha de Trump.

Em 2015, o Facebook alertou que os dados da GSR não podiam ser usados mas estes já estavam copiados e a ser utilizados. Segundo um comunicado do Facebook, a CA, Wylie e Kogan garantiram que estes mesmos dados tinham sido destruídos.

Em março de 2017, o site The Intercept revelou que o número de utilizadores do Facebook cujos dados tinham sido usados na eleição de Trump atingia os 30 milhões. Na altura, a rede social disse não ter encontrado nada de errado.

Preocupação com 50 milhões

As declarações de Christopher Wylie ao The Guardian neste domingo tiveram repercussões – nomeadamente com a sua conta pessoal no Facebook, que foi suspensa.

As ações bolsistas do Facebook caíram 7% (num valor estimado de quase 40 mil milhões de dólares) e a empresa anunciou em comunicado querer fazer uma auditoria à CA. Apesar do acordo desta, o Information Commissioner’s Office (ICO, equivalente à Comissão Nacional de Protecção de Dados) anunciou estar a conduzir a sua própria investigação e querer acesso aos servidores e bases de dados da CA, pelo que a auditoria foi suspensa.

Num trabalho paralelo, o canal de televisão Channel 4 News mostrou esta segunda-feira executivos da CA a falarem de financiamentos ilegais ou uso de prostitutas para chantagear políticos visando a obtenção de contratos em campanhas eleitorais. A empresa disse em comunicado que as palavras foram retiradas de contexto.

Tanto a CA como o Facebook ameaçaram processar os jornalistas que abordaram o assunto, enquanto nos EUA o Congresso quer ouvir em audiência Mark Zuckerberg, o CEO do Facebook.

No Reino Unido, a CA está a ser investigada pela Electoral Commission e pelo referido ICO, com quem disse esta terça-feira estar a colaborar desde fevereiro de 2017.

Também o presidente do Parlamento Europeu anunciou uma investigação ao caso e a comissária europeia para a Justiça, Vera Jourova, deverá encontrar-se com representantes do Facebook e do governo norte-americano na sua visita a Washington, esta semana, para debater o caso.

Críticas injustas? A diferença está no consentimento

Alguns dos utilizadores do Facebook começaram a apagar textos antigos (embora eles devam permanecer nos servidores da empresa), a fechar a possibilidade de partilha dos dados pelo Facebook e surgiram guias, como o da Electronic Frontier Foundation, para facilitar essa tarefa mas alertando que existem efeitos secundários noutras aplicações.

As críticas à rede social ainda não pararam desde o fim de semana mas Paul Bernal, da University of East Anglia, explicou ao jornal The Independent que este é o modelo tradicional do próprio Facebook.

A rede social recolhe dados dos utilizadores para criar perfis, para os seus sistemas lhes entregarem publicidade ou conteúdos específicos, possibilitando a entidades externas (como anunciantes) o uso desses dados e sistemas para fazerem o mesmo, incluindo em campanhas eleitorais.

Apesar da campanha de Trump no Facebook ter sido amplamente fustigada, Barack Obama fez exactamente o mesmo em 2012 e foi elogiado por ter conseguido chegar a mais de um milhão de utilizadores, jovens principalmente. Num artigo no The Guardian em 2015, sobre o envolvimento da CA na sua campanha, Ted Cruz chegou a dizer que estava a replicar o exemplo do ex-presidente.

A diferença é que, no caso de Obama, os utilizadores sabiam estar a partilhar os seus dados e os dos amigos com a campanha, ao contrário do que sucedeu com a CA.

Efeitos colaterais

Sinan Aral, professor na Sloan School of Management do MIT, considera que o facto de Kogan ter abusado dos dados a que teve acesso para fins de investigação pode afectar a forma como o Facebook passará a partilhá-los com a comunidade científica. “O que é surpreendente é que um académico possa tão flagrantemente violar o espírito e os termos das políticas de partilha de dados que o Facebook tem em vigor, levando esses dados e dando-os a uma empresa que nunca foi autorizada a tê-los em primeiro lugar, para fins de segmentação política”, disse à Technology Review.

Segundo Aral, é necessária uma maior transparência desta “máquina de vigilância”, como lhe chamou o New York Times. Mas também mais sentido crítico pelo lado do utilizador com o que partilha online.

Por exemplo, ao preencher os referidos testes de personalidade, está a fornecer informação agregada sobre gostos, comerciais, políticos ou religiosos. E são desnecessários: mesmo “um bom teste de personalidade raramente diz algo que já não se saiba”, defendeu Simine Vazire, directora do Personality and Self-Knowledge Lab na University of California, em julho passado, na revista The Atlantic.

No mesmo artigo, o já referido Michal Kosinski apontava a diminuição de privacidade online mas defendia os benefícios potenciais destes testes, como permitindo campanhas direccionadas para os jovens deixarem de fumar ou mensagens políticas personalizadas.

Por fim, é inteligente saber que o que se coloca online nem sempre vai parar às mãos do Facebook e que existem entidades mais discretas que estão igualmente a operar nestes domínios da informação pessoal.

Esta segunda-feira, quando os olhos estavam focados no escândalo CA-Facebook, foi anunciada a aquisição da DataSift, uma empresa que “retira dados de conversações em plataformas sociais, noticiosas e blogues, torna-os anónimos” e cede-os a outras organizações, explicava a TechCrunch. A compradora foi a Meltwater, especializada em serviços de “business intelligence” como monitorização de media e analítica baseada em inteligência artificial.

No final da semana passada, o site Ars Technica revelou o Finder, um programa da Intelligence Advanced Research Projects Agency que pretende dar uma localização precisa onde qualquer imagem (fotografia ou vídeo) foi registada, bem como identificar as pessoas que nela constam. A agência norte-americana quer usar imagens publicadas, nomeadamente em redes sociais, contornando a privacidade dos utilizadores.

MadreMedia