OPINIÃO QUE CONTA: “Covid-19 & a ampliação mediática numa sociedade dominada pelo medo”

“Há uns dias li que: “vivemos numa sociedade do medo” (Cardoso,G., 2020). No âmbito da pandemia apresenta-se a ideia de que o mundo está a viver tempos inauditos. No entanto, será que é mesmo assim? Isto é, será que estes tempos são mesmo inéditos, como apresentam os média?

Numa singela tentativa de resposta a esta inquietação, como primeira reflexão, recordo aqui duas ideias basilares que ouvi nas aulas de História no secundário – “a história teima em repetir-se” e “a história da humanidade divide-se em três grandes realidades – fomes, pestes e guerra”. Por isso, e ao invés do que os média pretendem impor, através da sua incessante corrente de informação acerca da pandemia, esta não é a primeira vez que a humanidade lida com uma situação pandémica desta dimensão. Aliás, pode dizer-se, que há pelo menos duas gerações que tal não ocorria. Agora, dizer-se que é inédita, é, no mínimo, propaganda maliciosa com intenções meramente mercantilistas…

A última vez que tal ocorreu foi com a Gripe Espanhola – que ocorreu entre 1918 – 1920. Com o primeiro caso detetado em Fort Riley Kansas EUA e embora a sua ocorrência coincida com a eclosão da 1ª Guerra Mundial, estima-se que tenham morrido aproximadamente 17 milhões de pessoas no mundo. Só em Portugal, este número cifra-se em 60 mil. Destas vítimas, destaco o artista plástico – Amadeo de Souza Cardoso e o nosso conterrâneo António Fragoso – compositor/pianista natural da Pocariça – Cantanhede.

Para além das questões sanitárias desta pandemia que são as mais basilares, é igualmente importante recordar o seu impacto noutras áreas da sociedade – nomeadamente, na economia. Neste caso, recorro ao clássico da literatura mundial – “As Vinhas da Ira”, de John Steinbeck. Nesta obra, pode ver-se uma descrição detalhada do quotidiano de uma família norte-americana – os Joads – que, por dificuldades financeiras, foram expulsos do Oklahoma, e partiram para a Califórnia. Nesta viagem, assiste-se não só a precariedade que ficou após a pandemia, como fundamentalmente aos efeitos nefastos que a “Grande Depressão” e o “Dust Bowl” tiveram no país. Estes fenómenos de recessão económica mundial só foram ultrapassados através das medidas do “New Deal” de F.D. Roosevelt. Trata-se de um conjunto de reformas económicas assentes numa maior regulamentação por parte do estado. Aliás, esta linha de pensamento é ainda hoje uma das essências em que assentam as dinâmicas da macroeconomia mundial.

Ao olhar para a ecologia mediática atual e a forma como tem abordado a pandemia, pode ver-se que se define através de um incessante bombardeamento de informação acerca das inúmeras vagas que já vieram e que ainda hão-de vir. Para descrever esta liquidez constante de conteúdos, recorro ao termo “media outlet”, usado por Donald Trump. Porque é na regulação do medo que muito do jornalismo atual giza a sua presença. Não interessa ser verdade, o importante é chegar primeiro!

É a alienação da moralidade em que devia assentar o jornalismo pela era do “clickbait” (na internet) – onde a gestão das audiências é a essência almejada. Informar, formar e educar são cada vez mais corpos estranhos nesta ecologia mediática em que a palavra de ordem é a venda a retalho de fatos manietados com a intenção de dosear os impulsos de uma audiência que desespera por soluções. Trata-se de um estranho jogo de xadrez com contornos capitalistas entre o que é premeditado e o que é inevitável. Não será, portanto, desajustado comparar alguns editores de informação ao “mestre do suspense” – Alfred Hitchcock! Porque não é fato em si que assusta, é o desconhecimento da iminência da sua ocorrência. Estamos na “Sociedade do Espetáculo” (Debord, G., 2012).

Desde muito cedo, somos ensinados a ter medo. Aliás, é no receio do desconhecido que o politeísmo e o monoteísmo religioso alicerçaram e mantêm a sua presença. No entanto, para se falar do medo, temos de abordar a morte. Ter-se medo de morrer, é-nos inato. Pois, está-se perante uma inevitabilidade – é uma realidade que é comum a todos nós. Diz-nos Zigmunt Bauman (2008) que o “ser humano” é tomar conhecimento da inevitabilidade da sua morte. E é neste momento, num mundo cada vez mais norteado por ideias balizadas num absolutismo tecnológico, que se pensava até há pouco tempo invencível, que concluímos que: através de uma “simples” gripe, ainda é possível assistir-se ao fim da nossa existência. Será esta a “morte” do nosso “admirável mundo sempre novo”? A história mostra-nos que não. O pânico geral resulta de o fato da magnitude da nossa existência ser apenas eventualmente um simulacro ampliado da nossa existência finita. É caso para dizer que: “arrancadas todas as máscaras, por trás estará o vazio”, (Beckett, S., appud., Bragança de Miranda, J., 1995).

Neste contexto, tal como já aconteceu no passado, há uma inversão dos valores do jornalismo e da informação. Aliás, assiste-se à transformação do garante democrático desta profissão numa espécie de ideologia em que a sua essência vigilante não passa de uma sombra caricatural. E hoje, nesta deriva com propósitos meramente económicos, no seu exercício assiste-se a um constante “fundir” do que é ficção e o do que é realidade. Trata-se da imposição do “infotainment” (conteúdos que misturam entretenimento com informação). É o apogeu da “Sociedade Líquida” de Bauman (1999) que exprime as debilidades de uma sociedade vazia de padrões alicerçados que está dependente da mediação tecnológica e da ditadura dos seus modelos de interação comunicacional.

Porém, esta realidade não é nova. Aliás, a nossa história é profícua neste tipo de episódios. Veja-se, por exemplo, a imposição de alguns regimes fundamentalistas e totalitários. Aliás, pode dizer-se que sempre que a solidez dos alicerces da sociedade é colocada em causa, os “cães de guerra extremistas” brotam o seu ideário odioso. Veja-se o retorno em força dos “ismos” que cavalgam as ondas do atual contexto pandémico como possíveis libertadores de um suposto agrilhoado que aprisiona a humanidade. O populismo é isto mesmo – a promoção de falsos profetas. É um exercício de culto à personalidade. Trata-se, no fundo, de uma prática demagógica que visa mascarar, através de subterfúgios comunicacionais que enviesam a opinião pública, a incapacidade e a sensibilidade de compreender os verdadeiros problemas de uma sociedade. E hoje, cada vez mais, é possível ver-se inúmeros figuras públicas que, através dos média, papagueiam as suas mensagens de cariz seguidista enquanto simultaneamente cavam valas comuns…

Pode pensar-se que tal realidade tem contornos apenas nacionais e internacionais. No entanto, tal não é verdade. Pois, também em termos de política local, embora sem a dimensão e o cariz extremista, é possível assistir-se a ações desta natureza. Veja-se, por exemplo, o incessante ressoar do eco mediático assente em ações de solidariedade feitas por agentes políticos locais. Poderão até ser apenas tentativas de apaziguamento social, é certo. No entanto, não deixam de ser, na sua essência, ações mediáticas com intenções claramente do âmbito do “marketing político”. Aliás, há até quem lhe chame o: “novo normal”. Eu não concordo com este termo. O que eu sei é que vão-se realizar eleições autárquicas para o próximo ano e não há tempo a perder. Aliás, por isso mesmo considero que, através da constante promoção destas ações, as autarquias locais estão apenas a mostrar que estes eventos são meramente realidades plásticas e estéticas com um valor social quase inexistente. É o célebre – “é só para Inglês ver”. É como o incessante jorrar do aroma a alcatrão e a cimento que emana a um ano das próximas eleições em tempo de pandemia.

Em suma, embora sublinhe a importância de responsabilidade social inerente a cada um de nós, considero que, por um lado, é essencial aos média acabar com a propagação do discurso do medo. Neste caso, embora reconheça a fragilidade destes órgãos, é imperioso que retornem à sua essência formativa de garante da democracia, pois esse papel platónico é ainda deles. Isto é, só eles podem ajudar a distinguir os factos da ficção e têm a capacidade de dirigir a opinião pública de uma forma edificante. É, portanto, necessária uma mudança editorial que reconheça a responsabilidade das suas ações e entenda que a verdadeira pandemia não está apenas no vírus, mas também na propagação do medo.

Por isso, em jeito de conclusão, considero que é imperioso que se compreenda que a solução para este problema não está na desmaterialização dos ideais da nossa sociedade, porque tal como já ocorreu no passado, haverá vida para além da pandemia. E mais uma vez será na solidez dos valores da sociedade que vamos erguer as soluções que são necessárias para o persistir da nossa existência. É, portanto, importante compreender que ações de propaganda, nunca deixaram de ser um indicador de um sistema esvaziado de ideias, criatividade e de soluções consistentes e de serem na essência um exercício meramente plástico…

Luís Miguel Pato

Profissional e Docente em Ciências da Comunicação”