OPINIÃO QUE CONTA: “Ciao Maestro, grazi… E de repente o cinema ficou mudo” (Luís Miguel Pato)

“Ennio Morricone (1928 – 2020)

E de repente, não se ouve nada; nem uma nota; nem um acorde, nem um som sequer… O cinema ficou mudo. Morreu Ennio Morricone… 

Parece que foi ontem que vi pela primeira vez o filme – “O Bom, o Mau e o Vilão” (1966), realizado por Sérgio Leone e “musicado” por Ennio Morricone. E digo “musicado” e não “sonorizado” porque como lembra e bem Diogo Vaz Pinto do “Jornal Sol” – “o Maestro Morricone não faz bandas sonoras, mas sim música para cinema”.

 Bem, retomando o que estava a escrever – era o final da década oitenta e eu, ainda criança, estava nos Estados Unidos da América. Nessa altura, vivia com a minha família no 3º andar de uma casa verde na “Lafayette Street”, perto da famosa “Ferry Street”, no bairro – “Ironbound” em “Newark”. Nessa semana estavam a passar na PBS (Canal Público – Norte Americano) os filmes da “trilogia dos dólares” – tratam-se de três obras cinematográficas (“Por um Punhado de Dólares” – 1964; “Por Mais alguns Dólares” – 1965 e “O Bom , o Mau e o Vilão” 1966 ), todas realizadas por Sérgio Leone e que foram filmados no estúdio Cinecittá, em Roma e em Almeria – no Sul de Espanha. É sobre estas três obras que se edifica o subgénero de “western” chamado – “Spaghetti Western”. Tratam-se de filmes de cowboys produzidos com orçamento baixos, poucos recursos e contavam com a participação de atores em início de carreira. No caso destas obras, o mundo ficou a conhecer Clint Eastwood – que até à data, tinha feito pouco mais do que uma série norte-americana chamada – “Rawhide” (1959).

No caso de “O Bom, o Mau e o Vilão”, ao ouvir o ressoar do assobio desafiador dos créditos iniciais do filme e a forma como este dialoga com o meio envolvente, em que se ouve um coiote a ganir de fundo, somos logo introduzidos à presença de uma condição humana mais selvagem.  Fiquei logo siderado. É assim que conhecemos a personagem de “O Mau” – Tucho (Eli Wallach). Depois, claro há final épico desta obra. Uma sequência, hoje considerada uma parte da história do cinema. Nela vê-se o modo como os planos das filmagens desfilam perante a lente de Leone. Primeiro navegam sobre a orla dos acordes de uma guitarra quase vagabunda; depois, cavalgam uma harmonia majestosa que é vociferada em crescendo por uma trompete que ecoa não só no meio envolvente, como também na troca de olhares que ocorre entre as três personagens do filme num duelo final pela busca de ouro confederado num cemitério. É assim o tema – “A Êxtase do ouro”. Aqui, tal como ocorre com o resto da obra de Morricone, somos brindados com uma dialética constante que decorre da simbiose das filmagens que são ordenadas previamente sobre a batuta do Maestro Morricone. Aliás, acerca deste aspecto, sabe-se hoje da sua materialização na arte cinematográfica porque, ao invés da forma tradicional de musicar um filme – em que a banda sonora é composta após as filmagens – com as composições de Morricone, era o inverso – os filmes eram filmados só após a música que os iria sonorizar estar concluída. Foi assim com os filmes de Sérgio Leone, por exemplo. Portanto, são as imagens que pintam as melodias e não o contrário. 

Mas impõe-se a pergunta: afinal o que há de tão especial com a música de Morricone? Tal como ocorria com a cinematografia de Alfred Hitchcock, as suas obras são gizadas sobre uma troca entre a diegética (conjunto de ações que formam a narrativa) e um pulsar cirúrgico que resulta numa intensidade sonora organizada em crescendo.  Assim, cria momentos de suspense. E deste modo, nós enquanto público, somos brindados não só com tensões crescentes, como também com um sentimento de perigo e expectativa. Tal pode ser visto, por exemplo, na melodia desconcertante da harmónica tocada por Charles Bronson no início do filme “Era Uma Vez No Oeste” (1969), de Sérgio Leone. Ou a famosa cena do tiroteio na estação de comboios de Chicago do filme “Os Intocáveis” (1987), de Brian De Palma; ou ainda na cena em que o frade jesuíta Gabriel (Jeremy Irons), toca o tema – “O Oboé de Gabriel”, enquanto é cercado por indígenas guarani, no filme “A Missão” (1986), de Roland Joffé; a chegada da última diligência para “Red Rock” no início do filme “Os Oito Odiados” (2015), de Quentin Tarantino. E por fim, não podia deixar de mencionar a cena do filme “Era uma vez na América” (1984), também de Leone, em que Morricone se serve flautas de pan, para musicar a cena em que o amigo de Noodles (Robert de Niro) é morto na rua. 

Porém, também não se pode esquecer a estetização do belo também presente na obra de Morricone. A delicadeza presente em “Cinema Paraíso” (1988), de Giusseppe Tornatore, em que se faz uma declaração de amor não só a deslumbre que resulta do poder de alienação que o cinema tem, como também à plenitude da sétima arte como um todo. A sensibilidade e a delicadeza presentes nos acordes do tema de “Deborah” do filme “Era Uma Vez na América” que descrevem a inocência de Deborah (Jennifer Connelly) nesta obra; o mesmo ocorre com os temas “Chi Mai” do filme “Le Professional” (1981), de Georges Lautner e o tema introdutório do filme “Era Uma Vez no Oeste”, de Leone – trata-se de um assombro musical que nos faz compreender perante o grotesco, característico no Oeste, a sensibilidade e o belo presente na personagem Jill McBain (Claudia Cardinale). 

Morricone nunca foi refém de dogmas ou agrilhoados da indústria. Foram mais de 500 composições em que criou paradoxos narrativos; géneros, identidades que lhes são únicas e que foram imortalizados em sons, viagens e instantes que foram emprestados às imagens que musicou e que pautam o nosso universo cinematográfico. Cada obra musicada por Morricone assume uma unidade quase poética. Uma ecologia sonora única que vai para além do toque pessoal da sua composição musical. É, no fundo um jogo entre a diegese e a antidiegese. É a sustentação das imagens sobre uma dissonância harmônica e melódica em que se ergue sobre o sentido do discurso da história que se está a contar. É este o mundo de Morricone… 

Em jeito de conclusão, recordo aqui os Óscares atribuídos pela Academia – embora tenha sido nomeado seis vezes, só recebeu o primeiro em 2007 – prémio carreira, depois ganhou um em 2015 pela banda sonora do filme “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino. Por pouco, Morricone não foi mais um dos injustiçados da história do cinema (Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovsky, Stanley Kubrick etc.) pela Academia. Estes realizadores não fizeram filmes, criaram géneros, inventaram novos mundos… 

Obrigado Maestro… 

Luís Miguel Pato 

Profossional e docente de comunicação” 

Foto: Fickr