“O genocídio como entretenimento” (Luís Miguel Pato)

Há uns anos estava a ver o filme – “Hotel Ruanda” (de 2004), realizado por Terry George, que narra o conflito político, entre as etnias hútu e tutsi, que ocorreram, em 1994, no Ruanda (Africa) e que culminou numa guerra civil onde pareceram aproximadamente 500 a 800 mil de tutsis. A trama relata a luta hercúlea travada por Paul Rusesabagina – gerente do Hotel des Milles Collines, localizado na capital Kigali, que abrigou e consequentemente salvou mais de 1.200 refugiados tutsi.

Nesta obra, para além da barbárie que enquadrou o contexto, há um excerto que, pela crueza da contemporaneidade que representa acerca da nossa dieta mediática em que tudo é entretenimento mesmo até as atrocidades que ocorrem num genocídio, me marcou profundamente (está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=psW7sLoNutA ). Aqui, Paul Rusesabagina (interpretado por Don Cheadle) diz ao repórter de imagem – Jack (Joaquin Pheonix) que está feliz por ele ter registado as desumanidades que estavam a acontecer. Deste modo, o mundo podia testemunhar e intervir para acabar com estas atrocidades. Jack responde-lhe que: “caso ninguém intervenha, são sempre uma coisa boa para mostrar”. Paul, atónito, pergunta: “mas como é que não podem intervir, quando estão a testemunhar tais atrocidades!?” Responde-lhe Jack: “Eu penso… que caso as pessoas vejam estas imagens, vão dizer – meu Deus que horror! E vão continuar a comer o seu jantar…”

Esta semana ao vermos pessoas a cair de aviões no aeroporto de Cabul no Afeganistão, após os talibãs terem conquistado esta cidade, após quase duas décadas de relativa paz, quantos de nós não fizemos o mesmo? Quantos de nós, não pensamos – “meu Deus, estão a entregar um recém-nascido a um soldado eu jamais faria uma coisa dessas!” e continuamos com a nossa refeição, ou publicamos um post no Facebook enquanto procurávamos uma moldura, com a bandeira do Afeganistão,  para sobrepor na nossa fotografia de perfil…

                        Mãe afegã entrega recém-nascido aos soldados norte-americanos                         

                                                                  (Fonte: Omar Haidari – Reuters)

A verdade nua crua está presente na resposta de Jack! Hoje, tudo é entretenimento. Presentemente, os critérios editoriais norteiam-se através da ampliação constante de atos horrendos. Parece que só assim é possível manter as audiências. É um somatório de elementos com índole puramente comercial. São “outlets” mediáticos que escolhem o valor noticioso de acordo com brutalidade do tema a tratar e das imagens a mostrar. Normalmente, a regra é: quanto mais violento, maior será a audiência. E em termos gráficos, pode ver-se que as imagens mostradas estão sempre no limiar do que é deontologicamente correto.

No entanto, nem tudo é mau. A história também mostra que estas imagens, por vezes, funcionam como catalisadores – isto é, testemunhos que causam uma resposta global. Quem não se recorda de Emmett Till – menino negro de 14 anos, morto por racistas americanos – cuja morte a imagem do seu cadáver evidenciou a brutalidade presente na segregação de Jim Crow na América; a fome na Etiópia; a “Napalm Girl”, da Guerra do Vietnam, e mais recentemente de Malala Yousujzai – a adolescente paquistanesa baleada na cabeça por talibãs, em 2012? Imagens que marcaram um posicionamento global, quase uníssono, do mundo perante contextos inaceitáveis.

                             Napalm Girl

                                                             (Fonte: Huynh Cong – Associated Press)

A propósito deste assunto, recordo aqui a história de Inela Nogic – a menina, de17 anos, que foi símbolo histórico da resistência de Sarajevo durante a guerra na Jugoslávia.

Em 1992, durante a cerco desta cidade (que durou mais de um ano), numa cerimónia que decorreu de uma forma quase clandestina, foi eleita Miss Sarajevo enquanto os bombardeamentos ocorriam no exterior e os atiradores furtivos matavam indiscriminadamente quem circulava pelas ruas da cidade.

Ao ganhar o prémio, Inela mostrou uma faixa a dizer: “Don”t let them kill us” – Não deixem que eles nos matem. O registo desta ação tornou-se num símbolo; um apelo. Uma convocação feita ao mundo pelas vítimas da guerra civil que estava a ocorrer neste país e nesta cidade naquele que foi o conflito mais mortal a ocorrer em território europeu após a Segunda Guerra Mundial.

Posteriormente, à realização do certame onde foi feito este pedido de ajuda, fez-se um documentário, da autoria de Bill Carter, e esta ação foi transformada num tema com o nome: “Miss Sarajevo” – imortalizado, por Bono, The Edge (U2), Brian Eno e Luciano Pavarotti, no projeto – “Passangers”.

(Fonte: Corbis)

Como pai de duas meninas, marido, filho etc., é com grande preocupação que assisto ao que está a acontecer no Afeganistão. Pior ainda é a forma quase impávida, serena e permissiva com que o mundo está a lidar com este retrocesso civilizacional. Espera-se que predomine o bom-senso e que, no mínimo, o envio de tropas internacionais esteja para breve…

Espero eu, espera o mundo…

Luís Miguel Pato

Profissional e Docente na área da comunicação