Morreu o artista plástico Júlio Pomar

O artista plástico Júlio Pomar morreu esta segunda-feira aos 92 anos.

Júlio Pomar morreu esta segunda-feira aos 92 anos no Hospital da Luz, em Lisboa, revelou fonte familiar à agência Lusa.

Nasceu em 1926 em Lisboa. Se o tivéssemos visto em criança, apanhá-lo-íamos “de rabo para o ar, a fazer bonecos em todos os papéis que apanhava”, contou ao DN em 2016. “Era uma criança muito metida comigo, que se refugiava no gosto e na prática quase excessiva do desenho.” Almada Negreiros foi a primeira pessoa a comprar-lhe um quadro: Os Saltimbancos. Pomar tinha 16 anos e expunha num ateliê na Praça das Flores. O pintor passou pela Escola António Arroio, e pelas Faculdades de Belas-Artes de Lisboa e do Porto, mas dizia que Velázquez lhe ensinara mais do que todos os professores que teve.

Jovem opositor ao regime salazarista e membro da comissão central do Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil, Pomar esteve preso em Caxias durante quatro meses. Tinha 20 anos. Um dos seus parceiros de cela era Mário Soares, de quem permaneceu amigo até ao fim da vida deste, em janeiro último. Traçara o retrato do amigo enquanto jovem, na prisão, e viria a fazê-lo muito mais tarde, no início da década de 90, criando o retrato presidencial de Mário Soares que hoje figura em Belém, e que na época causou grande polémica por contrastar com a habitual seriedade e formalismo com que os restantes presidentes portugueses foram pintados. Soares ria.

A prisão valeu-lhe a interrupção da pintura dos frescos de mais de cem metros quadrados no Cinema Batalha, no Porto, que fora convidado para pintar com apenas 20 anos. Dois anos depois, a obra eram tapada pela censura do Estado Novo. No início de fevereiro último, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, anunciava que o pintor iria recuperar os murais na sequência da recuperação do cinema pela autarquia.

Ainda durante o Estado Novo, foi Soares quem apresentou Pomar ao general Norton de Matos na altura da campanha às presidenciais de 1949 como pintor para lhe traçar o retrato. Tal deu-lhe “imensa popularidade entre os alunos” da Escola Afonso Domingues, onde era professor, lembrou ao DN, mas também lhe valeu o despedimento. A partir daí, passou a ter de viver da pintura, e assim faria até ao fim.

Obras como O Ganhadeiro (1946) e O Almoço do Trolha (1946-50) são tanto símbolos maiores do neorrealismo português e da juventude de Pomar como do protesto social que encerravam em si. Veja-se, por exemplo, o rosto marcado do trolha. Abandonado o neorrealismo, seguem-se obras como Maria da Fonte (1957) e séries onde o movimento é um dos traços predominantes, como Tauromaquias (1960-64) ou Les Courses (1964-66), que representava corridas de cavalos e que Pomar expôs em Paris, cidade para onde partiu em 1963, aos 37 anos. Vieram depois trabalhos que experimentavam novas linguagens – entre elas a assemblage – como Rugby, Maio 68 ou Le Bain Turc, d’après Ingres (1971), que foi mostrado no Museu do Louvre numa exposição dedicada ao mestre francês Ingres.

A literatura marca fortemente a obra de Júlio Pomar. Captou Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura, por várias vezes, a primeira das quais em 1959, para a ilustrar a edição traduzida por Aquilo Ribeiro. Guerra e Paz, de Tolstoi, A Divina Comédia de Dante , ou Pantagruel de Rabelais têm ilustrações suas. Para não falar dos escritores que retratou, de António Lobo Antunes – o amigo que uma vez disse à RTP que “há sempre uma gargalhada nos quadros dele” -, a Camões e Fernando Pessoa (que podem ser vistos na estação de metro de Alto dos Moinhos, em Lisboa), ou Baudelaire. Ele próprio escreveu duas coletâneas de poemas, Alguns Eventos (1992) e TRATAdoDITOeFEITO (2003), ambos editados pela Dom Quixote.

Na década de 90, Pomar expõe em Paris Los Indios e Les Indiens, retratando aqueles que conhecera ao passar algum tempo no Alto Xingú, Amazónia. Júlio Pomar lança-se à pintura das obras – de grandes dimensões – ao saber que tinha um cancro, conta no documentário da RTP Júlio Pomar – O Risco. Nele, a certa altura, diz: “E quanto à morte, fazemos o possível por que ela não entre nas conversas, quando afinal é uma das cores da paleta”.

Nunca deixou de trabalhar. Além da pintura deixou desenho, gravura, escultura, tapeçaria ou trabalhos de cenografia. Numa visita do DN ao seu ateliê em dezembro último, perguntámos-lhe em que trabalhava. “Vai-se rir. Estou a fazer um retrato de família que me foi encomendado por um senhor que tem uma coleção de pintura. Estou sensivelmente há um ano a fazê-lo, quase exclusivamente. O senhor está ansioso. E o quadro vai-se transformando, transformando…” E acrescentaria, falando das limitações que a idade já lhe impunha: “Gostaria de trabalhar todos os dias, trabalho sempre que posso.”

Em 2004 instituiu a Fundação Júlio Pomar e, em 2013, o Atelier-Museu com o seu nome abriria portas, num projeto assinado por Siza Vieira na rua do Vale, em Lisboa, mesmo em frente à casa onde vivia com a mulher, Teresa Martha, e tinha o seu ateliê.

Expôs mundo fora, de Paris a Nova Iorque ou ao Rio de Janeiro, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito em 1989, com a Grande-Oficial da Ordem da Liberdade em 2004, ano em que, em França, foi ordenado Chevalier de L”Ordre des Arts et des Lettres. Aos 90 anos, dizia que ainda se sentia como um touro a entrar na arena. “Ai sim, sim, sim. Ainda me sinto assim, estonteado por aquilo que o ver me revela.”

 

Fonte: Lusa

Foto: PAULO SPRANGER /GLOBAL IMAGENS