“Cem anos de Eduardo Lourenço: a redescoberta de Portugal e da cultura portuguesa” (António Valdemar)

24.5.2023 –

O centenário do nascimento de Eduardo Lourenço – que decorreu no dia 23 de Maio e com as mais diversas e justas homenagens – abrange os grandes temas que analisou em extensão e profundidade. Durante mais de 60 anos, Eduardo Lourenço abriu novos horizontes com leituras inovadoras sobre a obra e vida de Camões, de Antero e de Fernando Pessoa. Outras questões que aprofundou abrangem a relação e aproximação com a Europa e sobretudo os labirintos de Portugal dos portugueses através dos tempos.

Recorde-se que foi publicado através das edições Gulbenkian, num único volume e com o título “Antero, Portugal como Tragédia”, os ensaios, as conferências e as anotações ocasionais que escreveu. Revela alguns inéditos, entre os quais um texto muito significativo acerca dos Açores. Concretamente sobre a ilha de São Miguel e a propósito da importância que o mar exerceu na vida e na obra de Antero.

Pôde, assim, concluir que, enquanto «o mar em Camões é um elemento exterior, uma estrada para chegar a um porto já sabido», o mar tem outra ressonância em Antero.  São inúmeras as referências ao mar em inúmeros poetas, escritores e dramaturgos portugueses. Mas, na opinião de Eduardo Lourenço, falta-lhes a autenticidade que se depara na obra de Antero. O mar, na literatura portuguesa, «só irrompeu em Antero» com a força, o deslumbramento e a plenitude da sua evidência oceânica e da sua profundidade cósmica. O mar que envolve a ilha de São Miguel e acompanha Antero até ao fim – insiste Eduardo Lourenço – «identifica-se com a sua luta espiritual, fluxo e refluxo eterno, entre ser ou não ser como a vida».

O INÍCIO DA MODERNIDADE

Antero, para Eduardo Lourenço, desde que frequentou a Universidade de Coimbra, é «a maior referência intelectual portuguesa» e «o primeiro português que teve uma consciência trágica do destino humano»; é outra conclusão de Eduardo Lourenço. E justifica que, vários ensaístas, para retirar Antero do «lote dos suicidas anónimos», atribuem a «procura desesperada da morte a depressões patológicas, a uma peripécia subjetiva ou, ainda, a uma tragédia sentimental», quando, afinal, se trata do «último ato de uma vida que desejou tocar a face de Deus e não a encontrou». A essência do trágico deriva, portanto, do «combate a rosto descoberto que destrói uma por uma, com uma espécie de raiva triste, todas as flores da ilusão, todas as esperanças que o nascer do dia oferece à alma humana».

Antero marcou o início da nossa modernidade. Representa «o seu próprio ato fundador» escreve Eduardo Lourenço. Verificou-se na criação poética – e esta é a primeira leitura das Odes Modernas – não apenas ao nível da ideia, no domínio da filosofia e da poesia social, a «poesia revolucionária do futuro». Estendeu-se a novas formas de expressão literária. Abriu caminho ao imaginário de Cesário Verde, de Camilo Pessanha e de Fernando Pessoa.

«UM AJUSTE DE CONTAS…»

Revestiu-se, ainda, de maior impacto na afirmação da modernidade o discurso que Antero proferiu na sessão inaugural das Conferências do Casino (1871). Intitula-se Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. A expulsão dos judeus, em 1496, a instauração da Inquisição, 1536, o catolicismo imposto pelo Concílio de Trento (1563), destacam -se entre as mais graves consequências que impediram Portugal de ter acesso às grandes aquisições filosóficas e científicas que renovaram a Europa.

Antero introduziu uma revolução cultural que «nem é de natureza literária, nem política, nem mesmo ideológica ou banalmente filosófica, embora se traduza em todos estes planos, mas religiosa» pondera Eduardo Lourenço, após o que esclarece: «proposta sem precedentes em Portugal «no círculo da religião, não abstratamente visada, mas concreta, institucional», abrangendo «todos os valores intocáveis, desde os da Pátria aos da Justiça, desde os da Ordem aos da Família».

Estabeleceu, pela primeira vez e em público, um «separar das águas, um ajuste de contas da nossa cultura com ela mesma». Condenou a doutrinação do Concílio de Trento, que amordaça a liberdade de consciência e todas as outras liberdades. Insurgiu-se contra a Inquisição e o catolicismo dogmático e intolerante. Por tudo isto Antero preconizou a urgência de uma rutura frontal.

As inovações aprovadas no Concílio Vaticano II e desenvolvidas em algumas encíclicas não interromperam a polémica desencadeada por Antero, nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Permanece atual. Continua a ser – acentua Lourenço – uma questão «recalcada, diluída, escamoteada, não apenas na ordem das ideias (que é essencial) mas nos efeitos delas, no plano dos sentimentos, dos afetos, dos rituais privados e públicos que os encarnam».

A mais de cem anos da «sua voluntária morte», Antero «ainda tem inimigos. E merece tê-los», acrescenta Eduardo Lourenço: «O horror seria que os não tivesse». (…) «A visão unanimista da Geração de 70 que tem nele o seu ícone cultural esconde mal os conflitos, os antagonismos, as rivalidades, surdas ou clamadas, que, com matéria viva, o atravessaram» (…) Antero deixou uma obra que «é a estrela negra, fascinadora e repulsiva». (…) «A configuração trágica da obra e da vida de Antero – a primeira entre nós que assumiu esse perfil – é odiosa a gregos e troianos».

AS INTERPELAÇÕES DE SEMPRE

Esta visão clarificadora de Eduardo Lourenço, em torno da problemática anteriana, do aprofundamento do homem múltiplo, incita-nos á leitura e à reflexão dos vários ciclos da criação «do poeta e do prosador de génio». E, também, à reflexão em torno do percurso exemplar do homem e do cidadão. Remete-nos, quantas vezes, para as vulnerabilidades do mundo contemporâneo.

Estamos a viver uma época de enorme complexidade agravada por dois extremos: o ressurgimento dos nacionalismos populistas que conduzem aos regimes totalitários; e a ambição ilimitada de aprofundar a cooperação global que não consegue garantir em liberdade e democracia, o pluralismo de opinião, a estabilidade e a confiança.

O tempo é outro. Mas perdura a oportunidade das suas advertências. Perdura a firmeza dos seus clamores: «amei os homens e sonhei ventura/pela Justiça heróica, ao mundo inteiro/pelo Direito ergui a voz ardente/ no meio das revoltas homicidas; / caminhando entre raças oprimidas/ fi-las surgir como um clarim fremente». E era com enorme ansiedade que interrogava os homens indiferentes e dispersos: «Quando há-de vir o dia da Justiça? /Quando há-de vir o dia do resgate? /Traiu-me o gládio, em meio do combate/ e semeei na areia movediça».

A insatisfação excedia todos os limites. E interpela-o com veemência: «Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo/fiz do seu nome fortaleza e escudo» ;/ invoquei-o nas horas afrontosas/ em que o mal e o pecado dão assalto/; procurei-o com ânsia e sobressalto». /Ai dos que juntam com fervor as mãos, /ai dos que creem, ai dos que ainda esperam»! Deus nunca atendeu as súplicas de Antero. Um silêncio mais espesso confundiu-se com todas as lágrimas. Imperturbavelmente: «rolam, desabam, com fragor e espanto/ os astros pelo céu, frios e escuros».

Em cada dia e em cada ano que passavam Antero não conseguia qualquer resposta a um dos seus apelos de sempre: «Pelo mundo procuro um Deus clemente, / mas a ara só lhe encontro… nua e velha/Que és tu aqui? Olhar de piedade, / Gota de mel em taça de venenos…/Pura essência das lágrimas que choro/ e sonho dos meus sonhos! Se és verdade, / Descobre-te, visão, no céu ao menos!» Mais distantes e impassíveis os céus permaneciam calados nas alturas.

«VENENO E PODRIDÃO …»

A classe política – tal como hoje – refugiava-se em vagos compromissos. Os intelectuais não se empenhavam em concretizar um projeto concreto e viável para transformar o presente e construir o futuro. Portugal mergulhara num conflito de interesses, numa teia de ódios e num emaranhado de ambições. O desgaste provocado nos jogos políticos e nas retóricas parlamentares esgotava as energias para enfrentar o medo, transpor a insegurança e ultrapassar o marasmo e o conformismo.

Antero deplorava tudo o que via e tudo o que ouvia. Não era possível mais. Não era possível pior: «que vento de ruína bate os muros, /e deixando pender as mãos cansadas, /num gesto inerte ao abandono extremo?». Mas a indignação tornara-se implacável perante a situação política e social o oportunismo, a ausência de carácter e a falta de vergonha.

Portugal debatia-se com a ausência de soluções para vencer a crise. Crise aguda: crise política e crise social. Crise, acima de tudo, moral. O entusiasmo de Antero, a entrega incondicional à vida e a aposta nos ideais humanitários converteram-se em desalento, em aversão, em horror: “em largo voo, penetrei na esfera/ livre, contente, bom como os que moram/ entre os astros na eterna primavera». O contato direto com a realidade quotidiana desfez todas as ilusões.

Estas e outras questões que Antero viveu e sofreu permitem-nos encontro desmistificado do homem, do poeta, do pensador e do cidadão que não conseguiu reprimir a luta contra os sinais preocupantes de desgaste politico e social, o excesso da palavra e o abuso do silencio e exclama com insuportável amargura: «por que irrompe no azul do puro amor, /o sopro do desejo pestilento? /No combate do mundo traiçoeiro/só ressuma veneno e podridão».

Um dos legados da obra multifacetada de Eduardo Lourenço – e que vai, avultar nas comemorações nacionais e internacionais do centenário do nascimento – é a restituição de um Antero de carne e osso a confrontar-se, entre a lama da política e a procura de uma âncora associada à esperança.

 

António Valdemar

Jornalista, carteira profissional número UM; sócio efetivo da Classe de Letras da Academia das Ciências